A Lei Anticorrupção, que disciplina a celebração dos acordos de leniência no Brasil, completa uma década no próximo ano. Com o fim da Operação Lava Jato, berço da maior parte dessas negociações, e o risco de calote nos contratos já assinados, o clima é de desconfiança em relação ao mecanismo.
Os acordos de leniência funcionam como uma delação premiada para pessoa jurídica. As empresas assumem voluntariamente irregularidades cometidas, fornecem informações aos órgãos de investigação e se comprometem a mudar práticas internas de integridade, transparência e compliance e a ressarcir os cofres públicos. Em troca, têm a garantia de que não serão punidas ou que receberão benefícios em um eventual processo.
Durante a Lava Jato, 17 acordos do tipo foram fechados, com multas compensatórias que somadas chegam a R$ 12,7 bilhões. O problema é que as empresas alegam que estão com dificuldade para devolver os valores pactuados. No ano passado, a J&F, dos irmãos Wesley e Joesley Batista, entrou com um pedido para baixar o montante. A Odebrecht também chegou a estudar um pedido de revisão do acordo.
O Estadão conversou com o advogado e professor da Faculdade de Direito na Universidade de São Paulo (USP), Sebastião Tojal, o primeiro a participar da celebração de um acordo de leniência na Lava Jato. Ele avalia que chegou o momento de rediscutir o mecanismo e projeta que uma reforma deve atingir também os acordos já fechados - o que, admite, pode gerar insegurança jurídica.
"Esses acordos estão sendo feitos para serem descumpridos - não por falta de vontade, mas por falta de opção das empresas", afirma. "Meu receio é que a inadimplência se acumule e o instituto caia no descrédito. Estamos em um estágio em que os atores do mercado se perguntam se vale a pena fechar o acordo."
Na avaliação do advogado, especialista no assunto, a solução passa pela atualização da legislação, pela ampliação do diálogo entre os órgãos de fiscalização e pelo alinhamento com o Judiciário. Para Tojal, há hoje uma "disputa territorial" entre os diferentes atores que têm a prerrogativa de assinar o acordo - que, na esfera federal, são Ministério Público Federal (MPF), Controladoria-Geral da União (CGU) e Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
"A multiplicidade de órgãos objetivando o mesmo resultado e o mesmo alvo se mostra, na prática, como uma disputa territorial. Os agentes públicos não estão cumprindo com a sua função", critica.
Outro problema apontado pelo advogado é que a legislação não é clara sobre a abrangência de uma negociação feita apenas com um dos órgãos. Uma das construtoras alvo da Lava Jato, a UTC Engenharia, por exemplo, foi punida pelo Tribunal de Contas da União (TCU) mesmo após ter fechado um acordo com a CGU. Há outros procedimentos abertos pela Corte com base em informações prestadas em leniência.
"A experiência acumulada precisa ser usada para aprimorar a lei, sob pena do acordo de leniência virar letra morta. O estado de coisas atual conspira contra a efetividade do instituto", afirma. "O que eu verifico é uma política de autodestruição do mecanismo e isso pode nos fazer retroceder a um momento anterior, de uma legislação menos eficaz, um contencioso lento e um erário não ressarcido."
Para o advogado, os critérios para reparação também precisam ser revisados para equilibrar a capacidade de pagamento da empresa com o ressarcimento dos cofres públicos. Ele defende parâmetros "mais realistas".
"Há uma exacerbação indenizatória que, na prática, inviabiliza o próprio acordo. É, na verdade, um estado de não leniência. A gente precisa ter razoabilidade. Isso é a Constituição que diz", defende. "É preciso buscar um olhar que não seja dicotômico, que não seja binário, sem contrapor o ressarcimento do Estado e a sobrevivência da empresa, porque o excesso de puntivismo traz consequências péssimas também para a administração pública."