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Presunção de inocência: realidade, ficção ou ilusão?

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Por Renato Reis Aragão e Pedro Akrabian
Atualização:
Renato Reis Aragão e Pedro Akrabian. FOTOS: DIVULGAÇÃO E ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Grata seria a surpresa se os operadores do Direito resolvessem apoiar-se no referido princípio constitucional ao praticarem seus atos, deixando de lado o preconceito e a estigmatização - elementos enraizados em nossa cultura. É quase inacreditável que estejamos clamando pela devida apreciação de casos à luz da Carta Republicana, mas infelizmente não deixa de ser a realidade atual.

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Em pleno mês de julho de 2021, momento em que o Brasil enfrentava uma das piores fases da pandemia de covid-19, fomos contactados para socorrer J., que é pedreiro há 40 anos, casado e pai de três filhos. Em uma manhã do mês de abril, ele havia saído de casa para trabalhar e não voltou mais, graças à não interpretação dos fatos contidos nos autos de sua prisão em flagrante sob a lógica constitucional.

J., como a grande maioria dos trabalhadores brasileiros, se viu com dificuldades financeiras ao longo da pandemia e decidiu distribuir cartões com seus dados pela cidade de São Paulo a fim de que fosse chamado para fazer pequenos trabalhos - também conhecidos como "bicos".

No caso em apreço, foi contatado para fazer um serviço no piso de uma residência paulistana. Ali, foi surpreendido por uma batida policial baseada em denúncia anônima, que alegava que o local era um ponto de armazenamento de drogas. E de fato era.

Ocorre que J. nada tinha a ver com a situação e estava tão somente realizando seu serviço de pedreiro quando ocorreu a abordagem. O sujeito que o recepcionou tentou empreender fuga, mas também foi detido. Por sua vez, esse outro indivíduo assumiu expressamente aos policiais o porte dos entorpecentes. Mas fato é que para a autoridade policial e o Poder Judiciário isso pouco importou. J. foi encarcerado preventivamente sem ter participado do crime ali deflagrado e sem ter qualquer tipo de relação com as pessoas envolvidas.

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Diante de tamanho absurdo, restou tão somente à defesa recorrer prontamente ao remédio heroico constitucional, alegando, em síntese, sua primariedade. Sequer havia indícios concretos e suficientes da autoria delitiva aptos a justificar o encarceramento provisório. O pleito foi prontamente atendido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Já em liberdade, J. nos contou que, quando levado ao Distrito Policial para as medidas de praxe, foi informado que seria levado como testemunha e, em seguida, liberado. Contudo, permaneceu detido e sem o direito de ser interrogado formalmente. Isto é, foi detido sem a oportunidade de se explicar - uma verdadeira afronta ao ordenamento jurídico pátrio.

Na prática, portanto, o olhar despercebido dos princípios constitucionais por aqueles que detêm o poder de decidir sobre a liberdade alheia implica em prisões absolutamente ilegais. Não importou que J. estivesse trabalhando licitamente e nada tinha a ver com a situação - circunstância facilmente verificável pelos depoimentos colhidos.

Como é possível perceber a importância das diretrizes impostas pelos princípios constitucionais na condução de casos como esse? A observação do princípio da presunção de inocência basicamente consiste em dar a oportunidade de se responder ao processo em liberdade, o que no caso de J. seria imprescindível, sob risco de permanecer preso injustamente e ter de lidar com posteriores estigmas sociais.

J. ficou mais de dois meses preso cautelarmente. Sua vida jamais será a mesma após esse episódio. Basta imaginarmos como explicar essa situação a todos que vivem ao seu entorno, aos seus filhos e aos seus familiares.

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Tenhamos em mente que o ordenamento jurídico está aí para ajudar os operadores do Direito a solucionar conflitos como esse. Contudo, quando se trata da liberdade individual, a atenção e o respeito devem ser redobrados, sob pena de se privar a liberdade em vão.

*Renato Reis Aragão é sócio no Reis Aragão Advogados, professor assistente de Processo Penal na PUC-SP, secretário da Comissão de Direitos e Prerrogativas da Subseção de Pinheiros da OAB-SP

*Pedro Akrabian é sócio no Sigaud Akrabian Advocacia Criminal e pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP)

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