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Presidente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina diz que impeachment é 'remédio excepcional' e avisa que trabalho remoto segue mesmo após o fim da pandemia

Em entrevista ao 'Estadão', desembargador Ricardo Roesler fala sobre a experiência de comandar os tribunais mistos que julgaram, no intervalo de menos de um ano, dois pedidos de cassação do governador Carlos Moisés (PSL) e conta sobre a gestão do Tribunal de Justiça do Estado na crise da covid-19

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Por Rayssa Motta
Atualização:

Responsável por comandar os tribunais mistos que julgaram, no intervalo de menos de um ano, dois pedidos de cassação do governador de Santa Catarina, Carlos Moisés (PSL), o desembargador Ricardo Roesler, presidente do Tribunal de Justiça do Estado, classifica o processo de impeachment como uma faca de dois gumes: se, de um lado, é um instrumento regulador da democracia, de outro, deve ser usado como 'remédio' apenas para situações 'excepcionais'.

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"Em boa medida o recebimento de duas representações em curto espaço de tempo trouxeram à luz certa tensão política que há algum tempo se percebia no seio das relações institucionais. Naturalmente, a instabilidade política tem muitos reflexos, sobretudo na governabilidade, algo bastante delicado quando se atravessa uma crise de tamanha magnitude como a atual", afirma ao Estadão, em entrevista concedida pouco mais de dois meses após a votação apertada que rejeitou a segunda acusação contra Moisés e autorizou o governador a voltar ao cargo.

De acordo com o o magistrado, a preocupação comum aos dois processos de impeachment foi garantir transparência na condução dos tribunais mistos, resguardar a autonomia dos Poderes e assegurar uma resposta célere no contexto da pandemia de covid-19. "Por isso foi dada ampla divulgação das sessões de julgamento e das decisões tomadas, e o processo tramitou com acesso público por meio digital", explica.

O desembargador Ricardo Roesler: "Uma frase que tem que tem servido de premissa em minha gestão: mais bytes e menos tijolos". Foto: TJSC

Em outra frente, como presidente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o desembargador precisa lidar com o aumento dos pedidos para o Judiciário intervir na crise sanitária causada pelo surto do novo coronavírus e arbitrar conflitos inaugurados a partir de decisões administrativas. É o caso de ações sobre medidas de isolamento, como o retorno das aulas presenciais ou o fechamento de comércio, por exemplo.

Na avaliação de Roesler, o movimento não é recente, mas durante a pandemia os tribunais ganharam um 'protagonismo imposto pelas contingências'. "A dimensão da pandemia deixou essa atuação involuntária ainda mais evidente, na medida em que ações geridas pela conveniência administrativa e política vão sendo dirigidas ao Judiciário. Há um cenário de crise de legitimidade, agravado ao longo dos anos, onde se debita frequentemente ao Poder Judiciário a tarefa de ordenar políticas públicas", avalia.

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Outro desafio imposto pela crise da covid-19 foi a adaptação do dia-a-dia de trabalho no contexto de isolamento social. O modelo remoto, segundo o desembargador, deu tão certo que deve permanecer mesmo após o fim da pandemia.

"Essas iniciativas já estão sendo incorporadas, inclusive, ao planejamento estratégico, que deverá orientar a atuação do Poder Judiciário nos próximos seis anos, e compõem um amplo planejamento de mudanças que ao longo dos próximos anos irão desmobilizar parte das unidades, reduzindo custos sem prejuízo das atividades", adianta. "Eu resumiria esse processo de transição em uma frase que tem que tem servido de premissa em minha gestão: mais bytes e menos tijolos."

Leia a entrevista completa:

ESTADÃO: Como foi a experiência de presidir os dois tribunais que julgaram os pedidos de impeachment do governador Carlos Moisés? 

Desembargador Ricardo Roesler: Antes de tudo foi uma grande experiência pessoal. Em 2019, à frente do Tribunal Regional Eleitoral, dei posse ao atual Governador do Estado, e no curso do mandato viria a presidir o tribunal que o afastaria de suas funções em duas ocasiões no intervalo de um ano. Por outro lado, foi uma experiência histórica inédita, e um grande desafio presidir dois tribunais simultâneos para julgamento do impeachment. Além do panorama inédito, desde 1957 nenhum governador havia sido submetido ao processamento pelo tribunal especial que deve julgar os pedidos de impeachment. Por isso foi necessário um grande trabalho, que iniciou pela elaboração de um roteiro que permitisse ordenar as etapas do processo e o julgamento, tendo por base a Constituição da República, a Lei n. 1.079/50, o Código de Processo Penal e os julgamentos do Supremo Tribunal Federal que referendaram o procedimento adotado no processamento da ex-Presidente Dilma Rousseff e do ex-Presidente Fernando Collor de Mello. Havia desde o início a preocupação com a transparência na condução do processo e com a certeza de assegurar todas as garantias fundamentais. Por isso foi dada ampla divulgação das sessões de julgamento e das decisões tomadas, e o processo tramitou com acesso público por meio digital.

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ESTADÃO: Na abertura do segundo julgamento, no início do mês, o Sr. pediu sabedoria e serenidade aos colegas antes da votação. Acha que houve açodamento na abertura de dois processos para cassação do mandato em um intervalo tão curto? 

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Desembargador Ricardo Roesler: O pedido de impeachment, embora deva ser usado como um remédio excepcional, é um instrumento regulador da democracia. Por outro lado, a aceitação pela Assembleia Legislativa do pedido de impeachment, além de indicar a eventual prática de ato que configure infração político-administrativa, é sintoma de algum desgaste de natureza política. Em boa medida o recebimento de duas representações em curto espaço de tempo trouxeram à luz certa tensão política que há algum tempo se percebia no seio das relações institucionais. Naturalmente, a instabilidade política tem muitos reflexos, sobretudo na governabilidade, algo bastante delicado quando se atravessa uma crise de tamanha magnitude como a atual. De toda forma, o Poder Legislativo lançou mão, de modo legítimo e legal, de suas prerrogativas. Como presidente minha preocupação fundamental era de que o processamento e julgamento dos pedidos pelos Tribunais Especiais traduzissem não só a história e a tradição do Judiciário Catarinense, mas sobretudo a autonomia e independência dos poderes. Além disso, a função do Tribunal Especial de Julgamento era de assegurar uma efetiva resposta, em tempo hábil, à população catarinense. E creio que tenhamos alcançado esse objetivo.

ESTADÃO: Na avaliação do Sr., como foi a adaptação do Tribunal de Justiça de Santa Catarina ao trabalho remoto durante a pandemia? A Corte deve continuar operando em regime de home office mesmo após o fim da crise sanitária? Houve alguma consulta aos servidores e magistrados sobre essa possibilidade? O que levou a presidência a entregar o prédio na capital?

Desembargador Ricardo Roesler: Eu penso que a pandemia tenha servido para revermos muitas de nossas convicções, na medida em que exigiu de todos nós, subitamente, considerável empenho na adaptação e na busca de soluções às limitações decorrentes da crise sanitária. Adaptar nossas atividades presenciais a formatos não presenciais exigiu um esforço conjunto, e que só foi possível graças ao empenho de todos os nossos integrantes, servidores e magistrados, e do apoio das instituições que atuam conjuntamente com o Judiciário, como a OAB/SC, o Ministério Público de Santa Catarina e a Defensoria Pública de Santa Catarina. Os investimentos feitos ao longo de duas décadas em infraestrutura e sistemas de informação também permitiram a rápida adaptação ao trabalho não presencial. Por isso fomos o primeiro tribunal do país a adotar o home office em todas as nossas atividades. O resultado desse esforço comum foi o notável desempenho do Poder Judiciário de Santa Catarina desde o início da pandemia, que tem se colocado entre os tribunais com maior produtividade do país. Por outro lado, desde o início da gestão dialogamos com servidores e magistrados. Por meio de encontros presenciais e virtuais visitamos todas as comarcas, criamos fóruns para discussão do trabalho não presencial, criamos programas de desenvolvimento de bem-estar e mantemos constante diálogo por amplos canais. A partir dessas iniciativas e do amplo interesse manifestado por todos desenvolvemos diversas modalidades de trabalho não presencial que permanecerão após o fim da pandemia. Essas iniciativas já estão sendo incorporadas, inclusive, ao planejamento estratégico, que deverá orientar a atuação do Poder Judiciário nos próximos seis anos, e compõem um amplo planejamento de mudanças que ao longo dos próximos anos irão desmobilizar parte das unidades, reduzindo custos sem prejuízo das atividades. Parte disso já foi idealizado e realizado, ainda ano passado, quando determinei a elaboração de um projeto permanente de atividades não presenciais da área administrativa do Tribunal. O resultado foi a alocação de 86% dos servidores em suas residências, o que permitiu a devolução de um prédio até então ocupado por unidades administrativas. O espaço físico foi reduzido, e substituído por um coworking - o primeiro do país no Judiciário - para eventual realização de atividades presenciais. Tenho a convicção de que a difusão do trabalho não presencial como uma opção de aperfeiçoamento dos serviços e do desempenho deverá se sedimentar nos próximos anos como uma das tendências mais promissoras de renovação e modernização das atividades do Judiciário Brasileiro. Eu resumiria esse processo de transição em uma frase que tem que tem servido de premissa em minha gestão: mais bytes e menos tijolos.

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O desembargador Ricardo Roesler é presidente do tribunal de Justiça de Santa Catarina. Foto: TJSC

ESTADÃO: Em novembro, o Conselho Nacional de Justiça autorizou a realização de audiências de custódia por videoconferência na pandemia. Tem sido possível implementar o modelo? Há cooperação do governo estadual, levando em conta que salas em delegacias muitas vezes precisam ser equipadas? Qual a maior dificuldade?

Desembargador Ricardo Roesler: Veio em boa hora a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça em permitir a realização das audiências de custódia de forma não presencial. Com a gravidade da pandemia em curso e a necessidade de assegurar o direito dos custodiados a realização das audiênicas por videoconferência, ainda que excepcional, era indispensável. Desde a autorização do CNJ para que as audiências fossem realizadas por videoconferência discutimos com os organismos que compõem o sistema prisional - DEAP, IGP, Polícia Civil, Polícia Militar - as medidas necessárias para a implantação. Atualmente algumas exigências demandam maior atenção, entre elas o exame de lesão corporal logo após a prisão e a instalação de câmeras panorâmicas (360º) nas salas de custódia, tendo em vista a logística e o custo exigidos. A despeito da complexidade há um programa piloto em estágio avançado de desenvolvimento que deverá atender, a partir do próximo mês, a Capital e os municípios integrantes da Grande Florianópolis. Fizemos a aquisição dos equipamentos necessários e estamos preparando as unidades e os atores envolvidos. A partir da implementação e dos eventuais ajustes o projeto será ampliado para outras regiões do Estado.

ESTADÃO: Durante a pandemia, o Poder Judiciário tem sido chamado a arbitrar uma série de conflitos que, em razão da emergência da crise sanitária, precisam de respostas rápidas e não raro têm grande repercussão pelo impacto que causam na rotina da população. É o caso de decisões sobre medidas de isolamento, como o retorno das aulas presenciais ou o fechamento de comércio, por exemplo. Como o Sr. vê esse movimento de provocação constante da Justiça em um momento tão delicado?

Desembargador Ricardo Roesler: Com o passar do tempo o Judiciário tem sido chamado cada vez mais a solver demandas que a rigor encerram políticas públicas. Algumas delas compreendem o campo de incidência dos direitos fundamentais, e eventualmente outras são assim conformadas, embora na prática interfiram na gerência das atividades que são próprias de outros poderes. Em alguma medida podemos dizer que se trata de um protagonismo imposto pelas contingências. A dimensão da pandemia deixou essa atuação involuntária ainda mais evidente, na medida em que ações geridas pela conveniência administrativa e política vão sendo dirigidas ao Judiciário. Há um cenário de crise de legitimidade, agravado ao longo dos anos, onde se debita frequentemente ao Poder Judiciário a tarefa de ordenar políticas públicas. O Judiciário é de fato um agente regulador, mas deve ser a última razão. Sem a delimitação dos espaços e o uso racional dos instrumentos jurídicos corre-se o risco de agravamento dessa crise. A gestão pública exige por vezes decisões amargas do ponto de vista político, um ônus inerente à atividade política. Abrir mão de decisões difíceis significa abrir mão da própria autônima em alguma medida. É esse o vácuo imposto atualmente ao Judiciário.

ESTADÃO: Qual o foco dos investimentos em tecnologia do tribunal? A implementação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no eproc está em que fase? 

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Desembargador Ricardo Roesler: O Poder Judiciário de Santa Catarina tem longa tradição na área tecnológica. Nos últimos dez anos passamos pela transição do processo físico ao digital, que agora está chegando à sua conclusão com a migração dos últimos processos físicos. Atualmente os investimentos estão, grosso modo, divididos em duas frentes: a primeira, na expansão da infraestrutura destinada ao processamento de dados; e a segunda, na melhoria e no aperfeiçoamento dos sistemas. Também investimos na busca de soluções tecnológicas com a ampla participação dos servidores e juízes por meio da criação de um laboratório de inovação, e em acordos de cooperação com outros tribunais e entidades públicas e privadas em busca de soluções tecnológicas comuns.

Em relação à aplicação da LGPD ao sistema eProc, sob a coordenação do TJSC organizamos um Grupo de Trabalho formado pelo TRF-2, TRF-4, TJM-MG e TJM-RS. A avaliação inicial demonstrou que os níveis de sigilo implementados no eProc já trazem alguma conformidade à Lei, pois restringem o acesso a determinados dados pessoais tratados pelo sistema em relação aos seus usuários, diferenciando magistrados, servidores, advogados e demais usuários em consulta pública. O segundo passo é a conformação do sistema aos princípios fixados pela LGPD observando, sobretudo o binômio necessidade/finalidade. Para tanto o Grupo estabeleceu uma metodologia de avaliação do sistema e está atualmente mapeando os registros de ocorrência dos dados pessoais no sistema, e nos próximos meses será feito o cruzamento desses dados com telas e funções do sistema, e avaliada a métrica de ocorrências. O foco principal são as consultas de atos e decisões judiciais e os cadastros de pessoas no sistema, com vistas a eliminar dados desnecessários e exibir somente aqueles que estejam em conformidade com as bases legais estabelecidas pela LGPD. Essa avaliação é feita observando ainda os parâmetros fixados pela Resolução 121 do CNJ, que disciplina a consulta processual. A partir desse diagnóstico serão feitos os eventuais ajustes, e o acompanhamento cotidiano para adequação na medida em que forem desenvolvidas novas funcionalidades ou adotados novos sistemas.

ESTADÃO: O que o Sr. acha que vai mudar, ou já está mudando, na maneira de exercer a magistratura com a pandemia? O papel da Justiça sofre alguma transformação?

Desembargador Ricardo Roesler: A evolução tecnológica tem impulsionado grandes mudanças na atividade jurisdicional nas últimas décadas, que vão muito além do processo digital. Foram essas perspectivas de mudanças que orientam o plano de gestão que propus, definido por três premissas: inovação, integração e informação. Com a pandemia esse processo foi potencializado, e talvez antecipado processos de mudanças que tomariam as próximas décadas. Ainda estamos vivendo um período de transição, que impôs compulsoriamente novas formas de trabalho, mas ele tem servido definitivamente para ampliarmos a percepção sobre as perspectivas e possibilidades de realização de nossas atividades de forma mais efetiva e eficaz. Não estou falando simplesmente da realização das atividades à distância, mas da reformulação de processos de trabalho, de aprimoramento da atividade jurisdicional em todos os seus quadrantes, com racionalização de custos e aprimoramento do desempenho. É um momento de redescoberta não propriamente da vocação do Poder Judiciário, mas de sua potencialidade e do seu efetivo papel.

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