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Portaria MTP 620/2021 põe em xeque interesse coletivo e poder diretivo do empregador

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Por Paula Corina Santone
Atualização:
Paula Corina Santone. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A Portaria ("Portaria") MTP 620/2021, publicada na segunda-feira (01/11/2021), proíbe a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente.

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Nesse aspecto, a Portaria incorpora as previsões já contidas na Lei nº 9.029/95 que dispõe sobre a proibição de exigência de atestados de gravidez e esterilização, além de outras práticas discriminatórias para efeitos admissionais ou de permanência da relação de trabalho, dispondo também acerca de outras providências.

Ocorre que em seu §1º, do artigo 1º, a Portaria efetivamente proíbe ao empregador, de forma expressa, que exija do trabalhador na sua contratação ou na manutenção do emprego qualquer documento discriminatório e, em especial, comprovante de vacinação, além de outros, tais como certidão negativa de reclamatória trabalhista, teste, exame, perícia, laudo, atestado ou declaração relativos à esterilização ou a estado de gravidez.

Adicionalmente, em seu §2º, do artigo 1º, a Portaria ainda considera como prática discriminatória a obrigatoriedade de certificado de vacinação em processos seletivos de admissão de trabalhadores, assim como a demissão por justa causa de empregado em razão da não apresentação de certificado de vacinação.

A Portaria igualmente remete às sanções da Lei 9.029/95, no caso de rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório, hipótese em que, além do direito à reparação pelo dano moral, o empregado poderá optar entre a reintegração e a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento.

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Contextualizado o tema e os aspectos de maior polêmica, é inegável que, do ponto de vista jurídico, a Portaria em apreço é flagrantemente inconstitucional.

Primeiro porque invade temática reservada à competência de lei federal, apesar de fazer referência, ainda que de forma subliminar, a Lei 9.029/21, já que inova no quesito vacinação.

Segundo, porque a Portaria colide frontalmente com a Constituição Federal ("CF") que tem como brocardo prevalência, na hipótese, do interesse coletivo sobre o interesse individual.

A saúde é garantia do trabalhador prevista no artigo 7º, inciso XXII, da CF que, por sua vez, prevê a redução dos riscos inerentes ao trabalho mediante aplicação de normas de saúde, higiene e segurança.

Ademais, a Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública, de importância internacional, prevê, em seu artigo 3º, inciso III, alínea "d", a possibilidade de realização de vacinação compulsória, ressalvadas as hipóteses justificadas por lei ou por prescrição médica, e outras medidas profiláticas.

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Por sua vez, a Consolidação das Leis do Trabalho ("CLT") determina que é dever do empregador cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho, e que cabe ao empregado observar as normas de segurança e medicina do trabalho, inclusive as instruções do empregador em relação a esse tema e que o descumprimento injustificado de referidas instruções por parte do empregado constitui ato faltoso.

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Portanto, é inegável que a Portaria viola também o poder diretivo do empregador e prestigia o interesse individual em detrimento do interesse coletivo, chocando-se, na sua literalidade, com o texto da CF, ultrapassando ainda os limites da própria lei em ofensa ao princípio da reserva legal.

Nota-se que a Portaria está basicamente calcada no interesse individual, em prejuízo do interesse coletivo, conforme se infere dos "considerandos" citados no início do seu texto, ignorando por completo a intepretação conferida pelo STF ao tema vacinação compulsória, bem como o posicionamento da Justiça do Trabalho sobre o tema, além das diretrizes e entendimentos exarados pelo Ministério Público do Trabalho ("MPT") no seu "Guia técnico interno do MPT sobre vacinação da COVID - 19", em que defende exigibilidade da vacinação, ressaltando que a vacinação é uma política pública de saúde coletiva que transcende os limites individuais e que incumbe ao trabalhador colaborar com as políticas de contenção da pandemia da Covid-19, não podendo, salvo situações excepcionais e plenamente justificadas (v.g., alergia aos componentes da vacina, contraindicação médica), opor-se ao dever de vacinação.

Nesse contexto, provavelmente, em breve, haverá um posicionamento do STF sobre o tema que certamente afastará a aplicabilidade da Portaria em apreço, declarando-a inconstitucional.

De toda forma, para as empresas que preferirem optar por uma postura mais conservadora, visando uma maior segurança jurídica neste momento turbulento até ulterior manifestação do STF a respeito, é certo que a própria Portaria traz alternativas às proibições nela previstas.

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De fato, com a finalidade de assegurar a preservação das condições sanitárias no ambiente de trabalho, os empregadores poderão oferecer aos seus trabalhadores a testagem periódica que comprove a não contaminação pela Covid-19, ficando os trabalhadores, neste caso, obrigados à realização de testagem ou a apresentação de cartão de vacinação.

Portanto, até que a situação criada pela Portaria reste pacificada, as empresas que estavam exigindo, de imediato, o comprovante de vacinação, poderão primeiro oferecer a testagem aos seus empregados e, nesse caso, na hipótese de o funcionário não querer realizar o teste, deverá apresentar o cartão de vacinação. E, claro, caso o funcionário não adote nenhuma das duas atitudes (realização de testagem ou apresentação do cartão de vacinação), aí sim poderá ser punido por ato de indisciplina e insubordinação, em consonância inclusive com o teor da Portaria.

Situação semelhante poderá ser aplicada para os candidatos no processo de seleção (exigir testagem ou cartão de vacinação).

Todavia, importante lembrar que o coronavírus já contaminou e matou milhões de pessoas no mundo, sendo que a prevenção por meio do desenvolvimento e aplicação de vacinas seguras e eficazes, com alcance populacional, é um dos maiores benefícios que a comunidade científica poderia disponibilizar, não restando dúvidas de que a vacinação hoje representa um grande avanço na estratégia de enfrentamento da pandemia ocasionada pela Covid-19, haja vista o alto grau de contágio dessa doença, conforme dados estatísticos amplamente divulgados.

Em outras palavras, a vacinação é a alternativa mais eficaz, do ponto de vista científico, para garantir um meio ambiente de trabalho seguro e sadio para os trabalhadores.

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*Paula Corina Santone é advogada, sócia da área trabalhista do escritório Rayes e Fagundes Advogados Associados

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