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Portaria 636/20: medidas inconvenientes expõem contribuintes em momento impróprio

Por Flávio Sanches
Atualização:
Flávio Sanches. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em 2019 iniciou-se a prática prevista na Portaria da Receita Federal do Brasil nº 1.750/2018 de expor no site daquela autarquia, ao constituir o crédito tributário em definitivo com o término da esfera administrativa, a relação de pessoas que potencialmente tenham cometido crimes tributários, previdenciários e outros. Aparentemente satisfeitos com o resultado inicial obtido, desta vez publicou-se a Portaria da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) nº 636/20, que regulou a exposição de contribuintes com dívidas ativas perante a União ou Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. As medidas são apelidadas de lista negra por visivelmente pretenderem expor para constranger ao pagamento destas supostas dívidas. Alega-se serem as mesmas meramente informativas. Se de um lado o erário é algo que deve ser preservado pela coletividade, deve-se avaliar até que ponto essas medidas afetam um direito individual maior, bem como a sua conveniência e oportunidade.

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Começo por afirmar que há inconveniência e intempestividade das medidas. Nem bem saímos de uma grave, profunda e recorrente crise econômica, e quer-se forçar pagamento de tributos em atraso pelo método da exposição pública vexatória. Seria este o tratamento a ser conferido ao contribuinte na visão adequada de mantenedor da Receita Federal?

Nem devemos entrar na questão de ser um bom ou mal contribuinte, pois as medidas indistintamente afetam a todos, e os fins não justificam os meios. Em tempos recentes todas as esferas de governo divulgam a intenção de ser mais amigável e diminuir contenciosos, basta ver os recorrentes Códigos dos Contribuintes e regras de compliance tributário (Nos Conformes e tantos outros programas em implantação). Ao contrário do que se divulga, na prática aperta-se o cerco. Normas para coibir o não pagamento de tributos vêm sendo costuradas, com a definição e penalização dos devedores contumazes, esta sim uma regra conceitualmente necessária para fluidez do sistema atual conquanto seja ela equilibrada.

É preciso pontuar que as dívidas tributárias têm uma prerrogativa de cobrança forçada via execução fiscal, sendo que mesmo antes desta verificam-se a existência de instrumentos como protesto, inscrição no CADIN, restrição à plena atividade econômica por ausência de regularidade fiscal (CND), medidas cautelares fiscais, arrolamentos, etc. Uma vez instaurada a execução fiscal há que se garantir o débito para discuti-lo, o que muitas vezes ocasiona custo na frente para eventualmente se exonerar a dívida ao término de um processo. Arrisca-se, sempre, a temida penhora on-line via Sisbacen. Todas essas ferramentas devem ser eficazes, e se não forem, não é a exposição pública do devedor que deveria resolver.

Quando se expõe da forma pretendida com as medidas ora em comento, interfere-se na atividade econômica. Divulgar via aplicativo acessível pelo celular através de consulta pelo nome, razão social ou fantasia, ou ainda, por meio de localização do GPS do aparelho celular identificar empresas devedoras próximas ao dispositivo móvel, ou ainda, identificar dados de uma empresa acessando QR Code de notas fiscais, viola o sigilo e certamente causará embaraços desnecessários, para situações em que se condenará moralmente antes de uma explicação que possa existir. Pode-se também consultar utilizando CPF/CNPJ e realizar buscas personalizadas por tipo de dívida, por exemplo, FGTS, multa trabalhista, multa criminal, multa eleitoral, previdenciária, demais débitos tributários e demais débitos não tributários. Também possível navegar pelo mapa do Brasil e verificar quantas e quais são as pessoas jurídicas devedoras em determinada localidade.

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A Portaria deixa claro que a medida não substitui e nem prejudica as informações constantes da certidão de regularidade fiscal (CND). A exigência de CND é a forma que, preservados os dados sigilosos de cada contribuinte, resguarda-se as contratações públicos e mesmo privadas. Isso reforça que a medida não possui outro objetivo que não o de constranger o devedor. E isso revela vícios de inconstitucionalidade típicos de atos administrativos, como a ofensa aos princípios da motivação e da finalidade dos atos. Especialmente a divulgação da lista de possíveis crimes da Receita Federal para o Ministério Público condena sem que tenha sequer começado o respectivo processo crime, violando o direito fundamental da presunção de inocência, previsto no artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal de 1988.

O Supremo Tribunal Federal há muito já afastou o que se definiu como sanção política, ou seja, restrições que o poder público impõe às empresas e pessoas com débitos fiscais para desproporcionalmente cercear a própria atividade econômica. Estamos agora diante de um passo além, em que há a sanção social induzida pelo Poder Público para que o cidadão comum faça juízo de valor sobre fatos que a Receita e a Procuradoria revelam da intimidade de um jurisdicionado seu.

Nem mesmo a previsão de que não serão divulgadas as dívidas que estejam garantidas, ou com a exigibilidade suspensa, resolve a questão. Há uma multiplicidade de situações próprias de cada devedor a indicar que a exposição dos dados individuais não é o melhor caminho. O entendimento médio dos cidadãos brasileiros pode levar a consequências absolutamente injustas para situações de inadimplência passageira ou mesmo erros tão corriqueiros cometidos por parte dos órgãos públicos.

*Flávio Sanches, sócio tributário do CSMV Advogados

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