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Porque não amamos a democracia

 

Por Jésus de Lisboa Gomes
Atualização:

Nós não amamos a democracia representativa. E o desencanto com ela é, hoje, um fato evidente. Mesmo aqueles que a defendem, quando o fazem, não têm sido capazes de ir além de repisar velhos chavões, tal como a mais célebre vulgata forjada por Churchill de que a democracia é o pior regime, à exceção de todos os outros que foram experimentados pela humanidade ao longo da história. Nada dizem dos seus efeitos positivos. Quando muito, esporadicamente, ouvem-se expressões que se parecem ocas, como amor ao país e espírito republicano. Contextualizadas, mais do que ocas, elas se mostram impregnadas de rasteiro oportunismo político.

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A que, afinal, nos remete hoje a palavra democracia? Para muitos insignificância, corrupção, traição, desilusão, decepção, discurso vazio e prolixo.

A democracia representativa é um sistema estruturalmente problemático, cujas incompletudes inatas agravaram-se dramaticamente face à universalização dos sistemas públicos de educação, a ampliação do acesso ao desenvolvimento tecnológico e à mudança nas expectativas da sociedade. A ideia de maioria e de mandato, dois de seus princípios fundadores, tornaram-se ficções irremediavelmente incontornáveis nos tempos atuais. A já precária ideia de que a maioria expressa a vontade de todos se desmorona por completo ao supor a estabilidade dos grupos sociais. A ideia de mandato estrutura-se no insustentável pressuposto de que a vontade expressa pelo cidadão no instante do voto permanecerá por quatro anos, o tempo de mandato dos parlamentares e dos cargos majoritários, exceto o de Senadores, de oito anos - uma eternidade para esses tempos líquidos.

A democracia representativa é uma invenção francesa, aperfeiçoada pelos norte-americanos, que lhe deram forma constitucional. Ao instituí-la, seus criadores empreenderam esforços para afastar do exercício do governo, simultaneamente, o monarca e o povo - ambos considerados perigosos.

Um célebre discurso de Sieyès, pronunciado na Assembleia Nacional Francesa em 1789, esclarece perfeitamente essa condição. Ao fazer uma defesa entusiasmada do Governo Representativo, Sieyès contestava o direito do cidadão à participação, associando-a à democracia direta, considerada atrasada e 'boa para somente para os suíços': "Les citoyens qui se nomment des représentants renoncent et doivent renoncer à faire eux-mêmes la loi; ils n'ont pas de volonté particulière à imposer (...). Le peuple, je le répète, dans un pays qui n'est pas une démocratie (et la France ne saurait l'être), le peuple ne peut parler, ne peut agir que par ses représentants."

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A democracia representativa nasceu, portanto, dos escombros da democracia direta - no sentido grego a que nos remete o seu significado. Ao mesmo tempo em que o povo é proclamado soberano, transformado em potência para escolher os seus representantes, ele é completamente despossuído do poder de governar. Uma vez escolhidos os representantes, ocorre, na prática, uma transferência de poder e de direitos, pois, todas as decisões passam, então, a serem tomadas pelos eleitos, que falam, calam, consentem, concordam, discordam e agem em nome do representado.

Nas sociedades de massa, dirigidas por governos representativos, a eleição tornou-se um procedimento técnico de decisão eficaz, resolvendo o complexo problema da origem do poder. Nelas, o poder não pode vir de Deus, como reivindicavam os antigos monarcas, e não pode vir de especialistas técnicos, como costuma ocorrer nos regimes autoritários. Em uma democracia representativa o poder tem no povo a sua única fonte legítima possível.

Mas, em um governo representativo como entendia Sieyès, a participação dos cidadãos limita-se à escolha dos seus representantes. Democracia, nesse contexto, significa somente a existência do Parlamento, evitando, desse modo, a concentração do poder.

Em sua origem, portanto, o Parlamento era considerado a mais pura expressão do governo representativo, uma instituição que sintetizaria a vontade da nação, constituindo-se no local onde o interesse geral seria publicamente debatido em voz alta.

Contudo, é importante observar a extraordinária mudança que se processou no significado de democracia e de participação ao longo dos séculos XIX e XX. Pouco a pouco os cidadãos perceberam a impossibilidade do real exercício da representação. O eleito representa a nação; não o cidadão. Representa o interesse geral, uma ficção. Representa, na verdade, a si próprio, suas convicções e interesses ou os de um pequeno grupo.

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O Parlamento perdeu a sua centralidade e as demandas por participação se encaminharam em direção ao Poder Executivo, significando, em grande medida, a possibilidade de influenciar as decisões sobre a aplicação de recursos.

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Além de perder a sua centralidade, o Parlamento degradou-se de modo avassalador, convertendo-se em um sistema de mercadores, dominados por políticos profissionais, que instrumentalizam seus mandatos em lucrativos empreendimentos particulares e familiares, levando, inevitavelmente, ao desencanto, ao sentimento de ser malgovernado e de ser mal representado.

A esses problemas estruturais da democracia representativa, no caso brasileiro, devem ser somadas as perversidades do sistema eleitoral. Nele, o eleitor sabe em quem votou, mas desconhece quem elegeu. O eleito, por sua vez, não sabe quem o elegeu.

Mas, além de um regime de governo, a democracia encerra, também, uma forma de sociedade, implicando que nos reconheçamos como seres uns próximos aos outros. Toda desigualdade extrema constitui uma grave ameaça à democracia, ensejando que façamos uma reflexão sobre as enormes distâncias entre as estruturas de poder e a população comum, sobre as escandalosas diferenças distribuição de todos os recursos valiosos, entre os quais a justiça, os bem materiais, a educação e a cultura. Não haverá paz social, nem estabilidade política enquanto persistirem tais níveis de desigualdade.

O mal-estar com a democracia representativa e com todas as instituições a ela associadas, como os partidos políticos e as mídias tradicionais, mostra de maneira insofismável que a realização de eleições periódicas, embora central, não é mais suficiente para legitimar a autoridade dos governantes.

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A democracia representativa será cada vez mais pressionada por uma reaproximação às suas origens, por intermédio do restabelecimento de um regime que seja capaz de dialogar com o cidadão, submetendo os agentes públicos a novos mecanismos de accountability e legitimada em outros valores além do procedimento técnico eleitoral, entre os quais a participação, a transparência, a imparcialidade, a reflexividade e a compaixão.

Em uma democracia moderna a última palavra não pode mais ser deixada aos políticos. É imperiosa a instituição de mecanismos de iniciativa e de consulta direta à população, de forma a possibilitar que os cidadãos, atuando conjuntamente, possam complementar e mesmo corrigir os desvios da democracia representativa.

*Jésus de Lisboa Gomes é Mestre em Administração de Empresas e Doutor em Ciências Sociais. É professor e membro do Conselho Universitário do Centro Universitário FECAP e do Conselho de Curadores da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado.

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