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Por que chamar o presidente de 'genocida' não é crime contra a Segurança Nacional

Por João Paulo Martinelli
Atualização:
João Paulo Martinelli. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Um professor foi preso por um policial militar, em Goiás, por ter supostamente praticado crime previsto na Lei de Segurança Nacional ao deixar uma faixa estendida com a frase "Fora Bolsonaro genocida". As imagens captadas e divulgadas mostram o policial interpretando o fato como calúnia contra o Presidente da República porque genocídio é crime e, portanto, haveria imputação de calúnia ao Chefe de Estado, com previsão na referida Lei. Acontece que o ocorrido não configura atentado à Segurança Nacional e a prisão, por consequência, evidenciou abuso de autoridade. Deixando de lado o direito à liberdade de expressão, cabe uma análise jurídica do fato.

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Inicialmente, a Lei de Segurança Nacional prevê os crimes de calúnia e difamação contra o Presidente da República, porém, sem definir o que são esses delitos. Sendo assim, deve-se recorrer ao Código Penal, pois ali estão definidos os crimes contra a honra. Caluniar é imputar, falsamente, a alguém fato definido como crime, enquanto difamar é imputar a alguém fato ofensivo à honra. E aqui está o detalhe fundamental: calúnia e difamação pressupõem atribuir um fato ao ofendido. Genocida não é fato, é uma qualidade negativa.

Vejamos as diferenças. Dizer que uma pessoa é traficante, sabendo ser mentira, é atribuir uma qualidade negativa, mas não um fato. Diferente é afirmar, falsamente, que o ofendido ganha dinheiro vendendo drogas. Chamar alguém de traficante não é atribuir fato, e sim uma característica negativa, ofendendo seu decoro e sua autoestima. E, nessa situação, há o crime de injúria, este sim caracterizado por ofensa direta. Acontece que o crime de injúria não tem previsão na Lei de Segurança Nacional, apenas no Código Penal.

Ademais, o Código Penal traz uma regra clara para o prosseguimento de eventual procedimento criminal nos crimes contra a honra do Presidente: cabe ao Ministro da Justiça requisitar à Polícia Federal o início de investigação. O policial militar não poderia, por conta própria, efetuar a prisão porque não era sua atribuição legal. A injúria contra o Presidente da República é crime de ação pública condicionada, um dos poucos casos em que a vítima deve manifestar sua vontade de ver seu ofensor investigado e processado. Prisão sem fundamento legal, por conseguinte, de acordo com a legislação, configura crime de abuso de autoridade.

Se o Presidente da República se sentir ofendido com ofensas proferidas à sua integridade, ao seu decoro, à sua autoestima, sem que seja acusado de fato determinado, poderá provocar o Ministro da Justiça, que deverá requisitar início de investigação para posterior ação penal. O policial militar, ou qualquer outra autoridade, por conta própria, não pode prender ou investigar injúria contra o Chefe de Estado. A injúria não configura ilícito contra a Segurança Nacional, mas crime contra a honra do Código Penal. Este é mais um argumento para a revogação da Lei de Segurança Nacional e o necessário debate para os crimes contra o Estado democrático de direito.

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*João Paulo Martinelli, advogado, mestre e doutor em direito penal USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra, e professor do IBMEC-SP

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