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Políticas públicas para o consumidor em tempos de covid-19

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Por Luciano Benetti Timm
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Luciano Benetti Timm. Foto: Divulgação

Há muito tempo defendo academicamente a interdisciplinaridade, especialmente entre Direito e Economia, mas mais recentemente também com a Ciência Política, a Psicologia e a Neurociência. Para um órgão responsável pela política pública, resolver problemas dos consumidores surgidos com a pandemia é mais do que apenas lembrar de que existem dispositivos legais previstos no CDC. O treinamento acadêmico do jurista brasileiro é centrado no estudo das normas jurídicas, portanto, não tem ferramentas analíticas para trazer a realidade para a tomada de decisão.

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O problema disso é que problemas de gestão pública não são resolvidos apenas com a lógica jurídica, uma vez que o gestor público não é o juiz da causa, que deve julgar um caso concreto a partir do Direito posto (e pressuposto) e da doutrina; nem advogado que deve promover o interesse de uma parte em uma disputa específica a partir de argumentos retóricos. Ele deve tomar decisões de políticas públicas. E, para isso, a realidade e as consequências da tomada de decisão importam. Em uma conhecida metáfora: precisa enxergar a floresta, não apenas a árvore.

Em estudo inovador sobre o tema das políticas públicas no âmbito consumerista, Marcelo Sodré  sugere que o Direito Administrativo se volte ao estudo da temática das políticas públicas e não de forma tão restrita e dogmática como do ato administrativo. Mas, para tanto, precisaria, ainda segundo mesmo autor, aceitar o diálogo com outros (sub) sistemas como o da política.[1] Sodré então conclui que as políticas publicas representam "o instrumento de organização das ações estatais com a finalidade de atendimento a princípios ... normalmente materializados na Constituição Nacional".

Nesse diapasão, Eros Grau[2] há muito percebera - pela natural propensão do seu ramo estudo (Direito Econômico) ao diálogo interdisciplinar (particularmente com a Economia) - a necessidade do estudo pelos juristas do campo das políticas públicas, como esfera da atuação "promocional" do estado, no sentido de medidas, atuações concretas (programas) com vistas a promover determinados resultados, objetivos previstos legalmente (ou constitucionalmente).

Assim, uma política pública emergencial para o consumidor era necessária para a pandemia, na qual os princípios constitucionais fossem respeitados, assim como os ditames do artigo 4 do Código de Defesa do Consumidor: defesa de seus interesses, harmonização e métodos consensuais de disputa. Mas também que a realidade e suas consequências fossem consideradas.

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Afinal, situações concretas foram trazidas a partir de relações contratuais atingidas em cheio pelo caso fortuito (que se não for caracterizada como tal em decorrência da pandemia em si mesma considerada, certamente o seriam os atos de governo que dela se seguiram).

Até o momento, a Senacon seguiu uma estratégia de garantir ao máximo os direitos dos consumidores, dentro de uma realidade posta. Concluiu que devia falar a verdade aos consumidores (direito à informação). A Senacon emitiu uma série de notas técnicas enfrentando os principais dilemas dos consumidores durante a pandemia (ensino, creche, academias, entre outros).

A Senacon também trabalhou arduamente por Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) a fim de garantir os direitos dos consumidores (dentro de uma realidade possível, repete-se). E a Senacon também trabalhou em decretos, portarias e legislação em parceria com outros órgãos do governo federal a fim de construir ferramentas de manutenção de empresas, de trabalho e mesmo de direitos.

Finalmente, a Senacon propôs ao Conselho Nacional de Justiça, bem como a diversos Tribunais de Justiça Estaduais e mesmo a entidades privadas sem fins lucrativos que desejassem atuar pro bono o uso de mediação como ferramenta mais adequada de solução de disputas nesse momento.

E a Senacon não trabalhou sozinha. Atuou em parceria com Ministério Público Estadual, Federal e diversos procons, que compõem o sistema nacional de defesa do consumidor.

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Numa crise sem precedentes para o mundo, havia sim o risco de que a falência de empresas em massa (especialmente no setor de turismo, caracterizado por pequenas e microempresas) pudessem comprometer os créditos dos consumidores. Esse risco seria proporcional à capacidade de subsistência das empresas, o qual, por sua vez, dependia de sua preservação durante o pico da crise. E qual o fator mais importante para preservação das empresas nesse período (que, repete-se, manteria vivo o crédito dos consumidores)? O fluxo de caixa.

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Nesse sentido, se todos os consumidores fossem em juízo buscar seus direitos de crédito (leia-se o dinheiro colocado em um pacote turístico, numa passagem aérea, entre outros), inúmeras empresas poderiam se proteger requerendo judicialmente sua recuperação judicial. Isso já seria suficiente para suspender qualquer pagamento por um período não inferior a um ano (na prática forense).

A bem da verdade, empresas podem legalmente solicitar recuperação judicial mesmo que consumidores não ingressem em juízo. Todavia, esse risco diminui se elas conseguirem passar pela crise negociando acordos. Esse é um problema clássico de ação coletiva bem descrito pela análise econômica do direito.

Daí a estratégia fundamental de garantir o direito aos consumidores de remarcação gratuita da passagem aérea, do pacote turístico, do espetáculo, etc. Ou então, a conversão do seu direito em um crédito a ser utilizado futuramente, igualmente sem qualquer custo.

Se as empresas se dispusessem a fazer a isso, estariam colocando os consumidores na mesma posição que estavam antes da crise, e, portanto, sem qualquer prejuízo. Se o consumidor optasse, ainda assim, por desistir, receberia seu dinheiro de volta em 12 meses.

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E por que uma devolução do dinheiro dos consumidores em doze meses? De novo, por que se os direitos de crédito fossem imediatamente exigidos, na media, não haveria caixa disponível nas empresas para pagar. Empresas falidas ou em recuperação judicial não remarcariam passagens, eventos, shows, muito menos reembolsariam dinheiro. Além disso, as empresas se obrigariam a reagendar sem qualquer prejuízo aos consumidores.

Esse dado da realidade precisa ser trazido para a tomada de decisão do gestor público. Beira a irresponsabilidade ou populismo ignorar dados econômicos.

Finalmente, como responder a uma situação do consumidor precisar do dinheiro em razão da perda do emprego ou renda? Ora, há espaço nas medidas provisórias e nos TACs para um acordo entre empresas e consumidores. Também há inúmeros precedentes judiciais favoráveis aos consumidores em situações análogas caso empresas se houverem de forma irrazoável ou abusiva. Até porque uma regra de gestão é não tomar o todo pela parte e não fazer uma regra geral, pensando num problema específico que se quer resolver.

*Luciano Benetti Timm, secretário Nacional do Consumidor/Ministério da Justiça e Segurança Publica. Professor Doutor em Direito da FGVSP e UNISINOSRS.

[1] SODRÉ, Marcelo. "Formação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor". São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 156 e ss.

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[2] GRAU, Eros. "A ordem econômica na Constituição de 1988". São Paulo: Editora Malheiros, 1990.

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