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Planejamento tributário e insegurança jurídica

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Por Lucas Martini de Aguiar
Atualização:
Lucas Martini de Aguiar. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

De acordo com os dados oficiais divulgados pela Receita Federal do Brasil (RFB) no "Relatório Anual da Fiscalização da Receita Federal do Brasil - 2020/2021", as autuações fiscais realizadas em 2020 somam cerca de R$ 137 bilhões. Nos termos utilizados pelas autoridades fiscais, um dos principais elementos que justifica o aumento nos valores médios de lançamento por Auditor-Fiscal nos últimos anos é o "efetivo combate aos planejamentos tributários abusivos, normalmente executados por contribuintes com maior capacidade contributiva".

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Inclusive, desde 2015, as autoridades fiscais têm realizado um acompanhamento diferenciado desse grupo de contribuintes (Portaria RFB n. º 641/2015), o que "possibilitou a especialização dos Auditores Fiscais em temas característicos dos contribuintes de maior capacidade contributiva, tais como: preços de transferência, planejamentos tributários abusivos, erosão da base tributária em operações de comércio exterior, operações de reestruturação societárias, dentre outros.".

Ou seja, a própria RFB admite que o combate aos "planejamentos tributários abusivos" representa uma das principais diretrizes de fiscalização atualmente. Ocorre que, ironicamente, não se tem uma definição que confira segurança jurídica aos contribuintes sobre os 'limites' ao planejamento tributário.

Embora, por um lado, o tema já seja há um bom tempo alvo recorrente de estudos acadêmicos, de outro lado, é objeto de inúmeras e intermináveis controvérsias entre Fisco e contribuintes, travadas, sobretudo, no âmbito administrativo do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF).

Em sede judicial, o Supremo Tribunal Federal (STF) deverá concluir em breve o julgamento da ADI 2446, em que se analisa em controle concentrado de constitucionalidade o artigo 1º da Lei Complementar n.º 104/2001, especificamente na parte em que acrescenta o parágrafo único ao artigo 116 do Código Tributário Nacional. Trata-se do dispositivo legal comumente denominado "norma geral antielisiva" (nomenclatura que pode ser alvo de crítica).

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Por ora, o voto da Ministra Relatora Cármen Lúcia é o que conduz o julgamento a reconhecer a constitucionalidade do aludido dispositivo legal, sendo especialmente relevante a afirmação de que a "norma não proíbe o contribuinte de buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal, realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada.".

Embora entendamos como acertado o posicionamento da Exma. Ministra, definitivamente não será essa decisão, por si só, que irá garantir segurança jurídica aos contribuintes. Na prática, ainda prevalecerá a subjetividade em matéria de identificação dos "limites ao planejamento tributário".

A manutenção desse status quo repercute em enorme insegurança jurídica aos contribuintes, representando uma verdadeira violação ao direito fundamental em organizarem livremente suas atividades econômicas, o que é constitucionalmente assegurado.

Ainda que a regulamentação do parágrafo único do artigo 116 do CTN acarretasse avanços na regulamentação legislativa do tema, vale ressaltar que a existência de uma efetiva General Anti-Avoidance Rule (GAAR) no Brasil ainda seria medida insuficiente, por si só, para a promoção da transparência fiscal e do aumento da segurança jurídica em matéria de planejamento tributário[1].

Isso porque a natural indeterminação de uma norma geral e abstrata não conferiria aos contribuintes, em matéria de planejamento tributário, a necessária confiança para o livre exercício do direito fundamental de economizar tributos dentro dos limites da legalidade, especialmente em um país ainda distante de uma enhanced relationship entre Fisco e contribuintes, na linha proposta pela OCDE.

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A esse respeito, a coexistência com Specific Anti-Avoidance Rules (SAARs) poderia ser uma alternativa apta a trazer maior grau de segurança jurídica aos contribuintes, sobretudo em função da tributação no Brasil observar ao princípio da estrita legalidade[2].

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Igualmente relevante à construção de uma relação mais transparente entre Fisco e contribuintes, seria importante que as autoridades fiscais conferissem maior publicidade a respeito de efetivos indícios considerados como representativos de "planejamentos tributários abusivos". O atual regime de formulação de consultas fiscais é insuficiente e, muitas vezes, evitado por contribuintes, que preferem o "benefício da dúvida" em vez de expor suas operações.

Sem prejuízo de necessários avanços aptos a conferir maior segurança jurídica em matéria de planejamento tributário, é importante destacar um ponto em especial mencionado no referido voto da Ministra Relatora Cármen Lúcia, que apesar de não representar aspecto central no objeto da ADI 2446, merece atenção: "A plena eficácia da norma depende de lei ordinária para estabelecer procedimentos a serem seguidos". Em outras palavras, trata-se do reconhecimento de que o parágrafo único do artigo 116 do CTN é uma norma jurídica de eficácia contida.

Sobretudo em função da insegurança jurídica que predomina atualmente sobre a matéria, esse elemento pode ser explorado em favor de contribuintes que venham a se deparar com autuações fiscais e eventuais decisões administrativas e/ou judiciais desprovidas da devida fundamentação legal, caracterizadas pela mera utilização de um suposto permissivo de "desconsideração" previsto no parágrafo único do artigo 116 do CTN para justificar o lançamento tributário.

Inclusive, essa questão já foi enfrentada pelo CARF, como, por exemplo, no Acórdão n.º 3401-005-228 proferido pela 4ª Câmara da 1ª Turma Ordinária, que compreendeu que "o parágrafo único do art. 116 do CTN, introduzido pela Lei Complementar nº 104/2001, trata-se de regra anti-dissimulação, e prevê a possibilidade de desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, OBSERVADOS OS PROCEDIMENTOS A SEREM ESTABELECIDOS EM LEI ORDINÁRIA QUE ATÉ O MOMENTO NÃO FOI EDITADA, NÃO PODENDO, PORTANTO, SER UTILIZADO COMO FUNDAMENTO DA DECISÃO" - sessão de 27/08/2018.

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Aqui é importante fazer uma ressalva. É evidente que tal raciocínio não legitima a prática de planejamentos tributários efetivamente ilícitos, sendo inadmissível que a inércia legislativa permita que os contribuintes pratiquem atos atentatórios ao ordenamento jurídico. Inclusive, isso não passou desapercebido na referida decisão administrativa, que reconheceu que a não-regulamentação da norma em nada prejudica a legitimidade das autoridades fiscais em "descortinar o verdadeiro fato gerador quando reconhecida a simulação".

Significa dizer que os "pressupostos de fato e de direito devem estar minimamente demonstrados pela autoridade administrativa para tornarem juridicamente sólido o lançamento", sendo nulas as autuações fiscais que pretendam a desconsideração de negócios jurídicos quando instruídas e fundamentadas exclusivamente no parágrafo único do art. 116 do CTN - dispositivo ainda carente de devida regulamentação legal.

Note-se que o caso ora referido ainda não transitou em julgado administrativamente, tampouco representa orientação vinculante, todavia, expressa posicionamento consonante ao voto proferido pela Ministra Cármen Lúcia nos autos da ADI 2446.

Nesse cenário de inegável insegurança jurídica em matéria de planejamento tributário no Brasil, a observância desse argumento em casos práticos pode representar uma importante fonte de defesa para os contribuintes.

*Lucas Martini de Aguiar, sócio da área tributária do escritório Huck Otranto Camargo Advogados. Mestrando em Direito Tributário pela USP

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[1] ANDRADE, Leonardo Aguirra de. Acordo de Planejamento Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2020. pp. 562/563

[2] SCHOUERI, Luís Eduardo, BARBOSA, Mates Calicchio. "Chapter 6: Brazil". LANG, Michael (et al. eds.). GAARs - A Key Elemento f Tax Systems in the Post-BEPS Tax World, Online Books IBFD. IBFD, 2016. Pp. 109-145

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