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PL da Cannabis, ainda um diamante bruto demais

Por Cesar Camara
Atualização:
Cesar Camara. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

O Projeto de Lei (PL399/2019) que pretende regular o plantio de Cannabis para fins medicinais, científicos e comerciais deve ser votado em breve. Verdade seja dita, embora bem-intencionado e voltado para o futuro, ele ainda apresenta pontos controversos, que podem prejudicar resoluções já estabelecidas por agências reguladoras brasileiras e desorganizar um mercado que já encontrou uma certa estabilidade com as regulações promovidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), desde 2015 e recentemente com a RDC 327 de dezembro de 2019.

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É importante esclarecer que as regras para o desenvolvimento agrícola e para a produção de fitoterápicos, fitofármacos ou novas drogas, abordadas pelo PL 399, já existem e fazem parte de uma estrutura legal e de segurança bastante relevantes e estabelecidas há muito tempo no país. Em alguns pontos do PL, há, inclusive, questões peculiares e discutíveis, como a necessidade de construção de muros eletrificados de dois metros no perímetro de plantações abertas de Cannabis, além do plantio e cultivo realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) via programa Farmácia Viva que, como se sabe, compreende as etapas que vão do cultivo, coleta, processamento, armazenamento de plantas medicinais e manipulação à dispensação das preparações de tais plantas e fitoterápicos.

Um outro ponto relevante do PL é a falta de definições assertivas sobre variantes químicas. Por exemplo: o Projeto cita a palavra Cânhamo inúmeras vezes, mas não traduz suas multiplicidades. Para o PL, Cânhamo é a planta que possui apenas 0,3% de THC e é utilizada apenas para fins industriais, não medicinais. Este "Cânhamo" é, contudo, a planta que produz a vasta maioria dos óleos atualmente comercializados no Brasil. O texto considera ainda que plantas não psicoativas produzem até 1% de THC, outros trechos mencionam taxas de 0,3% e 0,1% - um parâmetro confuso e francamente aberto ao litígio.

A maior parte dos países define como o Cânhamo a Cannabis Medicinal produtora de até 0,3% de THC - devendo essa seguir todos os controles e cuidados dispensados a outras variedades agrícolas. Quando olhamos para a comercialização, a parte da planta que não é utilizada para os fins medicinais, pode ser encaminhada para a produção de tecidos, lubrificantes e ração animal, entre outros produtos. Na prática, isso significa que, quanto mais material orgânico a planta produzir, melhor será o aproveitamento do insumo para fins industriais, não sendo o nível de THC produzido o valor mais relevante para essa aplicação. Contudo, considerar e avaliar o Cânhamo Industrial com o mesmo rigor imposto a outras variedades da planta, pode sim impactar o país na questão agrícola, vide a Ilha de Hokaido no Japão, que não consegue exterminar o Cânhamo Industrial de seu ecossistema, lutando contra os pés que crescem no solo da região, antes essenciais para a manufatura local.

Falta ao contexto do PL o estabelecimento de padrões laboratoriais a serem seguidos, uma vez que não basta apenas aferir quantidades de Canabidiol e THC como obrigação inicial para um novo produtor. É necessário que, de saída, a análise completa do perfil de canabinoides, terpenos, ausência de agrotóxicos e de bactérias e fungos seja comprovada em cada safra, lote e frasco comercializado - essa é uma questão de segurança e de qualidade. Não podemos esquecer, tampouco, da análise quanto à ausência de metais pesados, agrotóxicos, solventes e de contaminantes no solo, o que, obviamente, prejudica a saúde dos pacientes. O Brasil, no entanto, não possui laboratórios implantados com o mínimo de custo-benefício necessário para minimizar essa questão e, ainda assim, ela segue sendo de extrema importância para a qualidade e segurança que desejamos.

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Um estudo da Universidade da Pennsylvania, publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA), em 2017, constatou que 70% dos produtos com canabidiol vendidos online tinham concentrações diferentes das daquelas descritas nos rótulos. Neste contexto, vale lembrar o que ocorreu na Colômbia, com algumas empresas que plantaram Cannabis em solo prévio de roseiras, para que a infraestrutura de estufas fosse reaproveitada. Conclusão: os extratos produzidos vieram contaminados com agrotóxicos que estavam impregnados no solo para o controle de pragas do antigo cultivo da flor.

Com isso, é comum que voltemos a um dos argumentos clássicos para a regulação necessária do plantio: o preço dos produtos no Brasil, na casa dos R$ 3 mil por um frasco com o óleo da planta. O que pouco se diz é que os produtos sintéticos ou isolados, vendidos em farmácias, custam realmente isso. Mas, por outro lado, chegam a ser de cinco a dez vezes menos potentes do que um fitoterápico de Cannabis verdadeiro, que, ironicamente, pode custar até dez vezes menos e ajudar a um número maior de pessoas que precisariam dele para ter uma vida melhor.

O desencontro do preço do frasco versus a potência do que foi extraído torna ainda mais barato o fitoterápico de qualidade, pois um paciente precisa de menos óleo para seguir o mesmo tratamento. Assim, despeito da real necessidade de mais acesso ao produto, a base de cálculos está equivocada já em sua origem. Extratos de alta qualidade - Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) - já podem ser legalmente importados, não havendo necessidade de plantio local e com a vantagem, inclusive, em relação aos custos desse material bruto, chegando em grandes quantidades ao país. Essa é uma das discussões essenciais que precisamos reforçar e que impacta diretamente na qualidade de vida e o consumo assertivo da Cannabis para fins medicinais.

É fato que, especialmente no Brasil, há questões quase incontornáveis que envolvem o tema Cannabis. Elas envolvem aspectos médico-científicos, morais, legais, agrícolas, de reparação social, dentre tantas outras de mesma intensidade. O PL 399 deseja louvavelmente resolver uma questão de extrema complexidade e absolutamente necessária, mas será que captou a voz de todos os atores envolvidos? Precisamos ampliar esse debate para que, juntos, encontremos um caminho que traga para as pessoas aquilo que mais importa: qualidade de vida com segurança.

*Cesar Camara é doutor em ciências pela USP e CEO da Biocase Brasil

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