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PGR: lista tríplice à brasileira

Por Renato Stanziola Vieira e José Roberto Coêlho Akutsu
Atualização:
Renato Stanziola Vieira e José Roberto Coêlho Akutsu. Fotos: Divulgação  

A história democrática do Ministério Público da União é composta de pontos altos e baixos. Da mesma forma acontece com a Ordem dos Advogados do Brasil, que tem uma democracia sui generis, inclusive para formação de suas listas sêxtuplas para indicação de candidatos ao cargo de desembargador em razão do quinto constitucional, regra prevista na Constituição da República que impõe que 20% das vagas nos colegiados dos tribunais brasileiros sejam reservadas à advocacia e ao Ministério Público.

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Embora haja críticas à forma como as escolhas se dão no âmbito da OAB, o caso do Ministério Público União - incluídos Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Militar e ainda o Ministério Público do Distrito Federal - vai de encontro às mais comezinhas noções de democracia, tal como se inaugurou a partir da Constituição de 1988. Há 20 anos se criou a lista tríplice para indicação de membros do MPU que poderiam ocupar o maior posto da carreira. Naquele 2 de maio de 2001 houve relevante abstenção, mas chegou-se a uma lista composta por três membros.

Fernando Henrique Cardoso, então presidente, não prestigiou a escolha interna e reconduziu ao cargo de procurador-geral da República Geraldo Brindeiro, malgrado ele tenha sido apenas o 7º mais votado. Foi um início nada auspicioso.

Em junho de 2003 deu-se finalmente o prestígio que a carreira merece: o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva indicou Cláudio Fonteles ao posto mais alto, em deferência ao sufrágio interno do qual ele havia saído vencedor. Da mesma forma se deu nas listas de 2005, 2007 e 2009, em que o presidente da República indicou ao posto de Procurador-Geral da República o membro com a votação mais expressiva.

Aquela nova tradição foi mantida em 2011, primeiro ano de mandato de Dilma Rousseff, tendo Roberto Gurgel sido reconduzido ao cargo. Dois anos depois foi a vez de Rodrigo Janot se tornar procurador-geral da República a partir da escolha realizada por seus pares, que o reelegeram em 2015.

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Durante o mandato de Michel Temer, a tradição foi parcialmente rompida, já que o mandatário da República escolheu Raquel Dodge ao cargo de chefe do MPU. Diz-se parcialmente porque ela foi a 2ª mais votada entre seus pares, tendo Nicolao Dino sido preterido apesar de ter vencido a eleição interna.

Em 2019 o retrocesso foi absoluto: malgrado 82% dos membros da carreira tenham votado, Jair Bolsonaro rejeitou a indicação dos procuradores e nomeou Augusto Aras como Procurador-Geral da República. O desgaste à instituição começou com a própria gestão do atual ocupante do cargo, não sendo incomum notícias de membros insatisfeitos, que abertamente indicam que o chefe não representa o ápice da carreira.

Agora, em 2021, chegado o momento da elaboração de nota lista tríplice, a notícia que poderia ser auspiciosa: pela primeira vez desde que foi criada a eleição interna, uma mulher foi a mais votada. Luiza Frischeisen, 2ª mais votada em 2019, conhecida por pontos de vista sérios e razoáveis, portadora de invejável curriculum vitae e que adquiriu, entre os pares, o respeito pela independência e tirocínio, conseguiu o maior apoio interno para liderar a carreira.

Nem seria preciso dizer do sem-número de motivos para que a sociedade garanta essa forma de escolha, mas vale destacar o resguardo da democracia interna ao mesmo tempo em que permite independência para o pleno exercício do cargo pelo escolhido, além do fato de que seus efeitos são temporários, com sufrágios a cada dois anos. Passa da hora de o chefe do Poder Executivo respeitar a democracia que o órgão - cuja independência do Executivo e mesmo do Judiciário só conseguiu conquistar com a Constituição de 1988 - pratica, de dentro para fora.

Há outras nuances da matéria que geram debates, mas o ponto crucial é: se a lista pode ser desrespeitada, para que ela serve? Há, claro, a sabatina a qual o escolhido pelo presidente é sabatinado pelo Senado Federal, mas desde a redemocratização não houve um nome sequer que não tenha sido aprovado com ampla margem. Então do que adianta gastar tempo e dinheiro público para uma corrida da qual o vencedor não ganha nada além de parabéns?

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É por isso que a sociedade deve, enfaticamente, dar importância à lista tríplice, inclusive com pleito junto aos congressistas para que haja aprovação normativa que imponha que o cargo de Procurador-Geral da República seja ocupado por algum componente da lista tríplice, já que atualmente se trata de mera sugestão sem qualquer imposição legal. Em matéria de atribuição de poderes e funções numa democracia, independência não rima com subserviência.

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Ao se permitir que o cargo volte a ser de livre nomeação pelo mandatário da República em detrimento da tradição republicana criada em 2003, há um natural desestímulo à corrida interna e, por óbvio, uma fragilização ao importante e indispensável papel exercido pela instituição. Apaga-se inclusive a conquista constitucional de independência, fazendo-se crer que o tratamento chegaria a ser, quiçá, aquele noticiado há pouco mais de um ano, no trato da coisa pública, pelo Departamento de Polícia Federal, por parte do presidente da República. Ministério Público da União, oras, não se submete à pasta de Ministério da Justiça, e não deve(ria) ser tratado como instituição obediente aos desígnios do chefe do Poder Executivo.

Nem seria preciso dizer, mas a mudança torna-se necessária também diante do conflito de interesses inerente ao próprio cargo, já que pela sistemática vigente um potencial investigado escolherá seu (não) acusador. Esse lado jurídico-prático sempre teve enorme importância, e nos dias que correm não é diferente. O escolhido, ou a escolhida, não deve(ria) ser aquele ou aquela que trouxesse maior conforto ao chefe do Poder Executivo. A lição, triste de ser lembrada inclusive com a coincidência do episódio de Geraldo Brindeiro ("engavetador-geral da República"), ecoa mais atual do que nunca nesses dias em que a separação dos interesses do Executivo e do chefe do Ministério Público da União beira à ficção.

Por todos os ângulos que se olhe surge a indispensabilidade de se prestigiar a lista tríplice. Ela não é perfeita e há muito o que ser melhorado, mas o único fato que parece ser incontestável é o retrocesso institucional a partir do completo desprestígio demonstrado em 2019 e que, como tudo indica, infelizmente será repetido em 2021. Ruim para Luizas e Clarices, pior para o Brasil.

*Renato Stanziola Vieira é advogado criminalista, mestre em Direito Constitucional (PUC-SP), mestre e doutor em Processo Penal (USP) e sócio de Kehdi & Vieira Advogados.

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*José Roberto Coêlho Akutsu é advogado criminalista, especialista em Direito Penal Econômico pela Escola de Direito de SP da FGV e sócio de Kehdi & Vieira Advogados

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