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Pesca ilegal, corrupção e crime organizado: a receita de uma tragédia

Por Guilherme France e Natan Duek
Atualização:
Guilherme France. FOTO: INAC/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O brutal assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips chamou atenção do Brasil e do mundo para a pesca ilegal e seus graves impactos não só para as comunidades locais, mas também para o meio ambiente e o combate ao crime organizado. A pesca predatória ameaça os ecossistemas marinhos e fluviais, coloca em risco espécies inteiras e prejudica a segurança alimentar de comunidades costeiras e ribeirinhas. Nas últimas décadas, passou a integrar arranjos criminosos complexos juntamente com o tráfico de drogas, armas e pessoas, além de outros crimes ambientais. A corrupção e o enfraquecimento da governança pública, derivado desmonte dos órgãos de fiscalização na Amazônia, são responsáveis diretos pelo avanço da pesca ilegal e, consequentemente, pelo fortalecimento dos grupos criminosos que atuam na região.

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Os vínculos entre a pesca ilegal e o assassinato já foram bem documentados, mas vale elencá-los: (i) dois dos suspeitos presos pelo crime são pescadores locais; (ii) o trabalho de Bruno Pereira contra a pesca ilegal no Vale do Javari era bem conhecido por todos; (iii) Bruno havia fornecido informações para operações que culminaram na apreensão recente de carregamentos de peixes e tartarugas que seriam utilizados como parte de um esquema de lavagem de dinheiro; (iv) em razão desta apreensão, aqueles pescadores contraíram dívida de R$ 80 mil perante um investidor e atravessador de peixe e caça ilícita; e, finalmente, (v) ambos haviam flagrado seus assassinos pescando ilegalmente pirarucus pouco antes do crime ser cometido.

De acordo com a avaliação do Global Financial Integrity, a pesca ilegal prolifera especialmente em regiões com pouca ou nenhuma governança, conflitos e corrupção. Esta se tornou, nos últimos anos, uma descrição precisa para o Vale do Javari após um rápido processo de desmonte dos órgãos de fiscalização atuantes nesta região.

Desde 2018, quando foi encerrada a base do órgão em Tabatinga, inexiste estrutura fixa do IBAMA na região do vale do Javari. Na FUNAI, há doze servidores em Atalaia, sendo apenas cinco do quadro efetivo. Para atender 7 mil indígenas de outros quatro territórios fora do Javari, há apenas três servidores. E, como se não bastasse a insuficiência estrutural da FUNAI, há relatos de que muitas vezes o pelotão do Exército da região - localizado a 1h30 de barco da região - não atende aos chamados dos servidores, alegando falta de efetivo, combustível e necessidade de ordens superiores. Vale lembrar que a própria exoneração de Bruno Pereira de seu cargo da FUNAI ocorreu após este coordenar uma operação contra o garimpo ilegal. O abandono da região pelo governo federal configura, inclusive, descumprimento de uma ordem judicial de 2019 que reconheceu a necessidade de fortalecimento das bases locais de segurança.

No Vale do Javari, a conexão da pesca ilegal com o crime organizado tem relação com a presença de rotas - os rios - de escoamento e escape de organizações transnacionais de narcotráfico, que disputam intensamente o seu controle. A presença de organizações como o Comando Vermelho, o Primeiro Comando da Capital e dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia evidenciam a integração da região (e da pesca ilegal) aos fluxos financeiros ilícitos internacionais. As fronteiras nacionais pouco importam para o tráfico de drogas e, também, de peixes ilegais. O produto da pesca ilegal também, com frequência, atravessa fronteiras em busca de mercados mais atrativos - o pirarucu é vendida ao dobro ou ao triplo do preço pago no Brasil em mercados colombianos e peruanos.

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A pesca ilegal movimenta uma série de economias ilícitas. Um dos destinos da carne de peixe ilegal são os laboratórios de fabricação de drogas na selva para alimentar quem atua clandestinamente no local, evitando assim a movimentação de suprimentos que poderiam gerar suspeitas. Eles são comprados a preços baixos ou pagos como 'pedágio' por pescadores em troca da autorização para pescar, conferida por esses grupos armados.

A pesca também é utilizada para lavagem de ativos provenientes destas economias ilícitas. Um peixe comprado no mercado ilícito, por preços abaixo daqueles pescados de forma lícita, pode ser revendido em feiras ou mercados legais por um valor até dez vezes maior que aquele pago ao pescador. Essa diferença de valor facilita a integração dos ativos no mercado lícito, promovendo a lavagem de dinheiro proveniente de quaisquer atividades ilícitas. Os peixes também servem de invólucros para ocultar produtos ilícitos, especialmente drogas. A ocultação da origem ilícita dos próprios peixes ilegalmente capturados ocorre quando estes são misturados com outras espécies - estas legalmente pescadas - e vendidos em mercados e feiras legais, como denunciado pelo Instituto Igarapé.

A corrupção é graxa que permite o funcionamento das muitas engrenagens que compõem esta mega-estrutura criminosa, a qual infiltra o Estado e sabota os esforços de combate à pesca ilegal e à criminalidade organizada. Também permite que peixes ilegais sejam vendidos no mercado legal e que seus lucros sejam integrados à economia formal, assegurando a impunidade de agentes que destroem o meio ambiente, impactam a forma de vida das comunidades locais e se beneficiam de todo tipo de economia ilícita.

Longe de representar um episódio isolado, o assassinato de Dom Philips e Bruno Pereira demonstra a evolução e a transformação da pesca ilegal em uma forma de criminalidade organizada complexa, cujo combate depende da conjunção de esforços de órgãos governamentais em todos os níveis e dos três Poderes e do setor privado, juntamente com a sociedade civil organizada e comunidade locais. Enfrentar este problema na Amazônia e, especialmente, no Vale do Javari, demandará, ainda, um esforço de cooperação internacional entre Brasil, Peru, Colômbia e outros países da região.

*Guilherme France é advogado, mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestre em Histórica, Política e Bens Culturais pela Fundação Getulio Vargas. Pesquisador e consultor de organizações internacionais e ONGs em temas relacionados à transparência, anticorrupção e integridade

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*Natan Duek, advogado criminalista I Litígio Estratégico em DH I pesquisador de Criminologia e Sociologia do Direito

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Acesse aqui todos os artigos, que têm publicação periódica

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