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Perspectivas para o setor de saneamento básico

Por Ricardo Levy e Roberto Lambauer
Atualização:
Ricardo Levy e Roberto Lambauer. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Há expectativa em relação ao avanço das discussões relacionadas ao saneamento, cujas deficiências se tornaram ainda mais visíveis no contexto da pandemia da covid-19. A crise sanitária pela qual passa o país deve levar o Senado a votar remotamente o PL 4.162/2019 (PL 4.162), que atualiza o marco legal do saneamento básico e já foi aprovado pela Câmara em dezembro de 2019.

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Levantamento realizado pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) em 2017 contém dados alarmantes sobre o setor: 35 milhões de pessoas não têm acesso a água tratada, apenas 52% da população está interligada a rede de esgoto e, do esgoto coletado, apenas metade é tratado. Há grande desnível regional. Apenas 10% da população da região Norte possui acesso a coleta de esgoto; no Nordeste, a parcela da população atendida é de 26,87%.

Tais dados negativos se devem principalmente ao déficit de investimentos no setor. O Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB), editado em 2013, previa a universalização de acesso até 2033. O atingimento de tal meta demandaria investimentos de R$ 18 bilhões ao ano. Porém, em 2017 foram investidos apenas R$ 11 bilhões em saneamento, uma queda de quase 20% em relação ao patamar investido em 2013 (R$ 13 bilhões). Paradoxalmente, as regiões menos desenvolvidas receberam volume menor de investimento. No ritmo atual, a universalização seria alcançada apenas em 2050. Apesar de o setor possuir enorme potencial para atração de investimentos, a sua evolução passa pelo enfrentamento gradual de uma série de desafios jurídico-institucionais.

O esforço do Governo Federal para alavancar o saneamento teve início com a aprovação da Lei Federal nº 11.445, em 2007. Essa lei inovou ao disciplinar a prestação de serviços mediante gestão associada de entes federativos (por meio de convênios e consórcios públicos), prevendo ainda a prestação regionalizada por um mesmo operador. Outra contribuição importante da Lei 11.445 foi possibilitar que o titular delegasse tanto a prestação do serviço como a sua regulação e fiscalização, o que abriu espaço para criação de agências reguladoras estaduais como a ARSESP em São Paulo e a ARSAE em Minas Gerais. É igualmente visível o esforço normativo para impor o planejamento setorial - tanto que a elaboração de plano de saneamento foi elencada como condição de validade de contratos que tivessem por objeto a prestação de serviços de saneamento básico.

Em 2013, o Supremo Tribunal Federal colocou fim à controvérsia em torno da titularidade dos serviços de saneamento básico, tendo decidido em prol da competência municipal em decorrência do preponderante interesse local sobre tais serviços. No caso de regiões metropolitanas, fixou-se o dever de gestão compartilhada dos serviços pelo estado e respectivos municípios, de acordo com a estrutura de governança interfederativa definida em lei complementar estadual. Ainda que os conselhos deliberativos de regiões metropolitanas tenham se mostrado pouco efetivos até o momento - problema ilustrado pelas frequentes judicializações do tema -, o incentivo à gestão compartilhada de serviços foi um passo na direção correta.

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Ocorre que a pauta percorrida na última década se mostrou insuficiente para assegurar avanços significativos no setor. O PL 4.162 é uma tentativa de atualizar o regime previsto pela Lei 11.445, de forma a permitir o enfrentamento dos principais problemas afetos ao saneamento a partir de uma perspectiva realista, calcada no pragmatismo de que "o ótimo é inimigo do bom".

É importante ter em mente que o setor de saneamento não será federalizado caso o PL 4.162 seja aprovado. Isso porque a Constituição Federal não atribuiu à União a titularidade sobre os serviços de saneamento, ao contrário do que ocorre em relação aos setores elétrico e de telecomunicações, por exemplo. Nesse contexto, o PL 4.162 aposta na intensificação de esforços nas esferas federal e estadual para melhor planejamento, regulação e gestão dos serviços de saneamento. Esse parece ser o único caminho possível, tendo em vista que a maioria dos municípios possui capacidade administrativa limitada para lidar com as complexidades inerentes ao saneamento.

O PL 4.162 atribui à Agência Nacional de Águas (ANA) competência para elaborar normas de referência para o setor de saneamento básico a serem observadas pelos diversos reguladores em nível estadual e municipal. O setor convive com dezenas de reguladores, sem que exista qualquer uniformidade normativa com relação a temas essenciais, como revisão tarifária, níveis de serviço, contabilidade regulatória e critérios de reequilíbrio econômico-financeiro. As incertezas jurídicas inerentes a esse cenário explicam a preferência em muitos casos pelo modelo de regulação contratual em detrimento da regulação discricionária. Portanto, seria bem-vindo o papel que se pretende atribuir à ANA, cuja competência está atualmente adstrita à gestão de recursos hídricos. Assim, a União passaria finalmente a desempenhar sua missão de criar alguma uniformidade no setor.

O estabelecimento de benchmark regulatório em nível federal demandará a contratação de corpo técnico especializado por parte da ANA, preocupação essa devidamente endereçada no PL 4.162. Paralelamente, a ANA elaboraria normas de referência com base na realidade brasileira e nas melhores práticas internacionais. Somente obteriam acesso a recursos públicos federais os entes que aderissem às normas de referência da ANA, ainda que de forma gradual. Os reguladores locais permaneceriam encarregados da regulação de ponta a ponta e da fiscalização dos operadores com base na adaptação do benchmark federal às respectivas esferas. Portanto, não seria realista esperar que a precária regulação do setor fosse significativamente aprimorada no curto prazo.

Outra contribuição importante em nível federal diz respeito à estruturação de projetos. O BNDES desempenha papel fundamental nessa seara, tendo atuado na modelagem da concessão para distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto na Região Metropolitana de Maceió (total de 12 municípios), cujo edital foi publicado recentemente. No modelo proposto, a Companhia de Saneamento de Alagoas (CASAL) permanecerá responsável pela captação, tratamento e fornecimento de água potável para o operador privado.

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O BNDES também atua na estruturação da concessão de serviços abrangendo um total de 64 municípios no estado do Rio de Janeiro, projeto esse que se encontra em fase de maturação. A intenção é que o novo operador atue na distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto. A Companhia Estadual de Água e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) forneceria água potável para o operador em uma parcela dos municípios.

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Esses recentes projetos ilustram a viabilidade de diversos formatos de privatização, os quais não passariam necessariamente pela alienação de controle de companhias estaduais, que costuma envolver notórias dificuldades e resistências. A modelagem de projetos de qualidade demanda a compreensão das necessidades locais, podendo ser adotados os mais variados formatos, tais como concessão plena, subconcessão e concessão administrativa - esta aplicável aos casos de delegação de coleta e tratamento de esgoto sem a cobrança de tarifa pelo operador privado.

Espera-se que Governo Federal - e o BNDES, em particular - intensifiquem esforços na modelagem de projetos de saneamento. De acordo com dados do SNIS (2017), entre 2014 e 2019 foram lançados 87 editais envolvendo a concessão de serviços de saneamento básico, dos quais 34 foram revogados ou suspensos, na maioria das vezes por falhas nos respectivos projetos.

O PL 4.162 prevê a adaptação dos contratos de programa firmados entre companhias estaduais e municípios com vista à transição para o novo modelo de prestação, baseado na fixação de metas, detalhamento de níveis de serviço, metas de expansão, entre outros temas, de forma que tais instrumentos passem a conter cláusulas típicas de contratos de concessão. Isso contrasta com determinados casos, ainda hoje, em que sequer há contratos firmados entre os municípios e companhias estaduais operadoras. Além disso, haveria obrigatoriedade de licitação para celebração de novos contratos de concessão quando o ente titular optasse pela delegação do serviço. O objetivo das novas regras não parece ser o de acirrar rivalidades entre companhias estaduais e privadas, mas tão somente de fomentar competição em pé de igualdade entre operadoras que se mostrem eficientes.

Para os estados que optassem pela privatização a partir da alienação de controle de companhias de saneamento, o PL 4.162 prevê a manutenção de contratos de programa firmados por tais entes com a subsequente adaptação dos referidos instrumentos ao novo modelo de prestação. Com isso, seria eliminado o principal entrave para venda de estatais, que consiste na extinção de tais contratos na hipótese de assunção de controle por operador privado, o que elimina o valor do ativo público.

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Um dos principais desafios para atração de investimentos no setor de saneamento é a criação de projetos de larga escala. O custo transacional tende a ser elevado, principalmente para novos entrantes, o que de certa forma reduz o apetite por projetos em municípios isolados. O PL 4.162 ataca o problema ao fomentar a criação de blocos de municípios (ainda que não estejam situados em regiões metropolitanas ou em áreas contíguas), prevendo a alocação prioritária de recursos a tais projetos. O modelo de blocos ampliaria a escala dos projetos e tenderia a atrair a participação de grandes players nacionais e internacionais, fomentando a competição e em última análise a qualidade dos serviços.

Apesar de ser elogiável sob o ponto de vista da racionalidade econômica, a formação de blocos de municípios envolveria desafios relevantes, notadamente a aprovação de leis municipais pelos entes titulares autorizando a delegação dos serviços ao respectivo estado, que por sua vez firmaria o contrato de concessão com o vencedor do certame. Há dúvidas sobre aspectos essenciais de tal modelo, tais como (a) qual seria o incentivo para municípios superavitários aderirem a blocos; (b) como seria recomposto o equilíbrio econômico-financeiro se determinado município decidisse se retirar do bloco ou mesmo na hipótese de adesão de novo município; e (c) como operar os serviços de forma integrada em relação a municípios que não se situarem na mesma bacia hidrográfica, dentre outros desafios técnico-operacionais. Tais aspectos podem evidentemente ser esclarecidos no âmbito da regulação ou mesmo da estruturação dos projetos.

O PL 4.162 não chega a eleger prioridades regulatórias que se pretende atingir com a atualização do marco do saneamento. Apesar de prever a premente necessidade de universalização dos serviços, o PL 4.162 não fornece pistas de como as metas de expansão seriam compatibilizadas com níveis de qualidade e com a capacidade de pagamento de cada população envolvida. O ponto certamente seria endereçado no benchmark regulatório a ser criado pela ANA e posteriormente adaptado de acordo com as peculiaridades regionais e locais.

Pelos fatores acima comentados, a perspectiva de aprovação do PL 4.162 tem gerado otimismo moderado no setor. Espera-se que o novo modelo venha a ser aprovado em breve pelo Senado, o que representaria um passo importante para a dissipação de incertezas jurídicas, com a consequente ampliação da participação privada em projetos de saneamento.

*Ricardo Levy, sócio de Pinheiro Neto Advogados; Roberto Lambauer, associado de Pinheiro Neto Advogados

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