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PEC Kamikaze, Ulisses e sereias

Um ensaio sobre o risco advindo da contínua desinstitucionalização do nosso Estado de Direito

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Por Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho
Atualização:

Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho. FOTO: INAC/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Planejava neste espaço discorrer sobre mais algumas dificuldades advindas da reforma da Lei de Improbidade Administrativa para sua missão de contribuir com o sistema brasileiro de combate à corrupção. Já falamos do tema por aqui em três oportunidades. Nada obstante os problemas trazidos pela nova legislação são tantos que o assunto ainda não se esgotou.

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Identificamos no processo legislativo que culminou na aprovação da Lei nº 14.230/2021 a fonte de muitas incongruências e falhas técnicas que marcam o novo texto legal, as quais, como era de se esperar, estão gerando acesos debates nos Tribunais, em um cenário pintado de insegurança jurídica e mesmo risco da mais completa deslegitimação das agências responsáveis pela apuração e punição de atos ímprobos, isso caso o potencial de verdadeira anistia embutido no novo diploma se concretize[i].

A notícia da aprovação relâmpago da PEC Kamikaze[ii], contudo, impõe-nos uma reflexão maior sobre o papel das instituições e do Direito na tentativa de racionalização e republicanização do exercício do poder político.

Se um processo legislativo mais detido, observando as respectivas etapas regimentais, a partir de um projeto de lei desenhado com auxílio de especialistas, submetido a audiências públicas e estudos de impacto, sob o crivo atento das comissões parlamentares pertinentes, intuitivamente poderia ter conduzido a uma reforma da Lei de Improbidade Administrativa de melhor qualidade da que nos foi ofertada pelo Congresso, o êxito até então obtido pelo voluntarismo por trás da PEC Kamikaze nos faz duvidar sobre a real capacidade que os instrumentos normativos têm para evitar péssimas deliberações públicas, movidas por inspirações provavelmente diversas daquelas que são esperadas dos nossos representantes eleitos.

A teoria constitucional lança mão de uma ilustrativa imagem para descrever a importância da Constituição de um povo em momentos de viva agitação social e aguda impaciência das demandas coletivas: Ulisses acorrentado ao mastro do seu navio, medida que ele se autoimpôs como meio de não se deixar persuadir pelos cantos das sereias em sua travessia por mares turbulentos, o que, em ocorrendo, seria a receita do desastre[iii].

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Pois bem.

Essa é a imagem que temos da atual conjuntura política brasileira.

Se a lei eleitoral impede aumento de despesas sociais em ano de eleição[iv], e se a ela mesma não pode ser modificada em tal período[v], isso tem um objetivo claro de proibir decisões governamentais que desequilibrem o sufrágio em favor do candidato que tenha a chave do cofre.

Se existe um teto de gastos previsto na Constituição e se esta prevê um rito mais complexo para ser alterada do que uma lei ordinária, que inclusive não poderia ocorrer em situações de emergência ou de grande comoção nacional[vi], busca-se evitar deliberações precipitadas sobre matérias relevantes para o país.

São as correntes que prendem Ulisses ao seu barco.

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Se nos perguntassem semana passada se seria possível ao governo federal criar um novo programa social, ou incrementar a despesa de um já existente, isso há 3 meses das eleições, diríamos com convicção que não.

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A Constituição e a lei são precisas sobre esse tema.

Nada obstante no Brasil de hoje altera-se não só a legislação como a Constituição com tanta frequência, sem observância a qualquer rito processual vocacionado a contribuir para o debate e para o aprimoramento dos textos normativos projetados[vii], que o resultado teoricamente impossível com facilidade virou realidade.

Se as sereias cantam, devemos nos render aos seus encantos, e receber os aplausos da plateia. A final de contas, quem será contrário a dar mais dinheiro para as pessoas economicamente vulneráveis e a criar programas de apoio financeiro a classes profissionais especialmente impactadas pela alta internacional dos combustíveis?

A estratégia jurídica foi montada.

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Como o problema para o êxito da política redentora está na Constituição e na lei, basta alterar a Constituição.

A sedução é tão grande que o quórum qualificado de 3/5 para aprovar a medida não foi um obstáculo. Dois turnos de votação em cada uma das casas do Congresso? Que bobagem, façamos eles no mesmo dia, já que a urgência (da eleição?) não pode esperar.

E assim caminha a nossa nau, numa trajetória tresloucada, como se não houvesse amanhã.

Mas haverá.

Quem será o "cara chato" que vai estragar esse grande esforço para atender aos anseios da população?

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"Cara chato": "Vejam só senhores, atenção! A medida proposta viola flagrantemente a Constituição e a legislação vigente! Isso terá um custo. Hoje é para atender aos nobres motivos anunciados por vossas senhorias. Amanhã poderá ser para satisfazer razões de outra índole. A ausência de regras para o exercício de poder é, no fundo, prejudicial a todos. Quem hoje é maioria amanhã é minoria, e vice e versa. Pelo menos discutam bem as propostas, sopesem seus ganhos e perdas, antes de jogar o país para esse caminho".

Ao que consta, no Congresso de 2022, houve apenas um "cara chato" no Senado e dezessete na Câmara.

[i] LIVIANU, Roberto. Anistia a corruptos pela porta dos fundos, disponível em https://www.naoaceitocorrupcao.org.br/post/a-anistia-a-corruptos-pela-porta-dos-fundos?utm_campaign=newsletter_inac_14_jul_2022&utm_medium=email&utm_source=RD+Station, texto publicado em 13/07/22, acesso em 14/07/2022.

[ii] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/07/veja-o-que-muda-com-a-aprovacao-da-pec-do-auxilio-brasil.shtml., notícia de 13/07/22, acesso em 14/07/2022 .

[iii] ELSTER, Jon. Ulisses liberto - estudo sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições, trad. Cláudia Sant´Ana Martins, São Paulo: Ed. Unesp, 2009, p. 11 e ss.

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[iv] Lei nº 9.504/1997 - art. 73 - "São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais: (...) § 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.                      (Incluído pela Lei nº 11.300, de 2006)"( http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm, acesso em 14/07/22).

[v] Art. 16 da Constituição - "A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência"( http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 14/07/22).

[vi] O que se extrai de uma leitura teleológica, ou seja, atenta às suas razões de ser, do §1º do art. 60 da Constituição, segundo o qual: "§ 1º A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio"( http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acesso em 14/07/22).

[vii] Ao comentar sobre o trâmite da PEC sob exame, pontua Paulo MODESTO: "A alteração constitucional pretendida insere-se como exemplo típico de constitucionalismo abusivo.  Além de casuística, voltada precipuamente a alcançar efeitos no período eleitoral, cria "estado de emergência" artificial para violar norma voltada a "evitar a utilização abusiva ou casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação do processo eleitoral" (ADI 354, relatoria ministro Octavio Gallotti, DJ 12.02.93)(...) Viola o devido processo de elaboração das normas reformadoras, sendo na Câmara apensada e Proposta em fase adianta de avaliação (PEC 15/2022), suprimindo a instância da Comissão de Constituição e Justiça e prazos essenciais para o debate, e, no Senado, desconsiderando o interstício que deve marcar os dois turnos de discussão e aprovação"(Constitucionalismo abusivo e casuísmo eleitoral: PEC do Estado de Emergência, disponível, em

https://www.conjur.com.br/2022-jul-14/interesse-publico-constitucionalismo-abusivo-casuismo-eleitoral-pec-estado-emergencia, texto de 14/07/22, acesso em 14/07/2022).

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*Alexandre Jorge Carneiro da Cunha Filho, doutor e mestre em Direito do Estado. Juiz de Direito em São Paulo

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção

Esta série é uma parceria entre o blog e o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Acesse aqui todos os artigos, que têm publicação periódica

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