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PEC 05/21: o cavalo de Troia no Ministério Público

Por Aluisio Antonio Maciel Neto
Atualização:

Congresso Nacional. Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

"Cidadãos infelizes, que insânia vos cega? Imaginais porventura que os gregos já foram de volta, ou que seus dons sejam limpos? A Ulisses, então, a tal ponto desconheceis? Ou esconde esta máquina muitos guerreiros, ou fabricada ela foi para dano de nossas muralhas, e devassar nossas casas ou do alto cair na cidade. Qualquer insídia contém. Não confieis no cavalo, troianos!  Seja o que for, temo os dânaos, até quando trazem presentes!"

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O trecho acima, do Livro II da Eneida, de Virgílio [1], retrata o momento em que os troianos se depararam com um cavalo de madeira posicionado nas imediações das muralhas de Troia, em meio à guerra que se arrastava com os gregos, já exauridos por não conseguirem avançar para dentro daquela cidade fortificada. Incautos, os troianos interpretaram aquele gesto como presente dado pelos gregos, uma espécie de rendição, e o arrastaram para dentro de suas muralhas. Porém, enquanto Troia repousava, seus inimigos saíram de dentro daquele cavalo oco, tomaram a fortaleza e subjugaram os troianos. Troia, então, caiu.

Ardis inescrupulosos em frentes de batalhas nem sempre são transparentes ou apontam a realidade dos desideratos de seus detratores. Quase sempre tais atos são escorados em discursos afáveis ou gestos de grandeza, que somente são descortinados com a devida prudência e perspicácia de quem os analisa.

Eis a mesma tônica encontrada durante a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional nº 05, denominada de "PEC da Vingança", como retaliação feita pelo poder político ao Ministério Público em razão combate realizado nos últimos anos contra a corrupção do alto escalão da república.

Justificada como necessária para conferir "maior eficiência de sua atuação" e "eliminar certa sensação de corporativismo e de impunidade em relação aos membros do Ministério Público que mereçam sofrer sanções administrativas por desvios de conduta", a PEC propôs a alteração na composição do Conselho Nacional do Ministério Público, ampliando as indicações políticas do Congresso Nacional e prevendo que o cargo de Corregedor do CNMP também pudesse ser ocupado por indicação de parlamentares. Todavia, nenhum dado estatístico ou fato foi apresentado a demonstrar a ineficácia de atuação do CNMP ou a tal "sensação de corporativismo" ou de "impunidade".

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Pelo contrário!

Em recente relatório publicado pelo CNMP, demonstrou-se que o referido colegiado instaurou o dobro de procedimentos administrativos disciplinares (PADs) contra membros do Ministério Público em comparação ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça), nos mesmos procedimentos instaurados contra juízes. A quantidade absoluta de penas aplicadas pelo CNMP foi 58,62% superior à de penas aplicadas pelo CNJ. E mais: o CNMP aplicou 138 punições, dentre elas 96 suspensões, 22 demissões/exonerações, 19 disponibilidades compulsórias, 12 cassações de aposentadoria, entre outras penalidades.[2]

Dados concretos a demonstrar que o CNMP, ao longo de sua história, cumpriu o papel a ele destinado pela Constituição Federal.

No entanto, como dito, ardis inescrupulosos em frentes de batalhas nem sempre são transparentes ou apontam a realidade dos desideratos de seus detratores!

Desideratos que foram se tornando cada vez mais claros com a rápida tramitação da "PEC da Vingança", a atropelar outras que estão paradas há anos na Câmara dos Deputados, como a PEC do "Fim do Foro Privilegiado" (PEC nº 333/17) ou a PEC da "Prisão em Segunda Instância" (PEC nº 199/19).

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Em quatro relatórios preliminares, apresentados diretamente ao plenário, depois da proposta ser retirada da Comissão Especial sem apreciação, ficou evidente que a intenção era a de controlar e subjugar o Ministério Público.

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Não mais se pretendeu apenas a ampliação do número de vagas ocupadas por indicações políticas do Congresso Nacional no CNMP, mas também se passou a prever que (1) os cargos de Vice-Presidente e Corregedor do CNMP seriam ocupados por indicação do Congresso Nacional, bem como (2) a possibilidade de revisão de atos de atividade fim do membro do Ministério Público, como, por exemplo, tornar sem efeito uma denúncia oferecida ou uma ação de improbidade administrativa ajuizada, o que fulminaria a independência funcional estabelecida no artigo 127, §1º da Constituição Federal; (3) o controle do Procurador Geral sobre a composição do Conselho Superior do Ministério Público, 4) alteração do regime prescricional para punição administrativa, entre outras propostas que desfiguravam o perfil constitucional do Ministério Público.

E como se estivesse a colocar e tirar o "bode da sala", diante da repercussão negativa das alterações perante a opinião pública, o parlamento recuou e ensaiou a retirada dos referidos pontos no relatório apresentado, como se estivesse, mais uma vez, "atento ao interesse público e aos preceitos republicanos".

Sob roupagem soft, o novo relatório foi apresentado como adequado aos interesses do Ministério Público e sob o discurso de que eventual resistência seria fruto de "interesses meramente corporativos", como forma de convencer deputados contrários a aprovarem a matéria.

Porém, como dito, ardis inescrupulosos em frentes de batalhas nem sempre são transparentes ou apontam a realidade dos desideratos de seus detratores!

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E o relatório soft manteve pontos sensíveis que prejudicam da mesma forma a atuação do Ministério Público.

O primeiro ponto a ser abordado é justamente a composição proposta ao CNMP. Dos 17 membros que o comporão, 9 (nove) serão por indicações externas, das quais 5 (cinco) caberão ao Congresso Nacional. O Congresso Nacional será o ente com maior poder de indicação, mais do que o Ministério Público da União (que terá 4 representantes por ele indicados) e do que o Ministério Público dos Estados (que terão 3 membros por eles indicados).

Ora, se a maior parte de indicações pertence ao poder político torna-se evidente o peso que trará à referida composição de um colegiado que deveria se pautar por critérios técnicos-jurídicos, pois sua função precípua é de fiscalização e de controle.

De outro lado, a situação se torna ainda mais gravosa na medida em que os cargos de Vice-Presidente e Corregedor Nacional do CNMP deverão ser ocupados por pessoas indicadas pelo Congresso Nacional. Ainda que tais pessoas sejam ocupantes ou tenham ocupado cargos de Procuradores Gerais de Justiça, este fato não muda a natureza de suas indicações políticas para exercerem funções técnico-jurídicas.

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Aluisio Antonio Maciel Neto. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Se a Câmara dos Deputados e o Senado federal escolhem seus corregedores, assim como o CNJ também escolhe a sua corregedoria, não há qualquer fator de diferenciação a justificar que a corregedoria do CNMP seja escolhida de fora para dentro. Há, assim, quebra da necessária simetria constitucional e torna mais claro o intento de intervenção política no CNMP.

Se não bastasse, a referida PEC também determina a necessidade de o CNMP elaborar o Código de Ética do Ministério Público, como se já não houvesse regulamentação disciplinar específica.

Os deveres e vedações dos membros do Ministério Público estão devidamente dispostos na Constituição Federal (artigo 128, II), na Lei Federal nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) e nas respectivas Leis Orgânicas da União (Lei Complementar nº 75/93) e dos Estados. Leis aprovadas pelos respectivos parlamentos, e não por atos administrativos internos como se fossem produto de mero "corporativismo".

Aliás, nos termos do artigo 61 da CF, compete privativamente ao Presidente da República a iniciativa de lei que disponha sobre organização do Ministério Público da União e de normas gerais para a organização do Ministério Público dos Estados. E mais, de acordo com o artigo 68, §1º da CF, a legislação sobre organização, carreira e garantia dos membros do Ministério Público não pode ser objeto de delegação. Assim, ainda que fosse necessária a criação de Código de Ética do Ministério Público, esta iniciativa caberia ao chefe do poder executivo e não poderia ser delegada a terceiros, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.

O terceiro ponto a ser enfrentado, e talvez o mais grave, é a manutenção da possibilidade de intervenção do CNMP na atividade-fim em relação aos atos administrativos.

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De acordo com o §3º-F, do artigo 130-A da CF da aludida proposta, "o Conselho Nacional do Ministério Público poderá desconstituir atos administrativos que constituam violações do dever funcional dos membros após a devida apuração em procedimento disciplinar, preservada a independência funcional e assegurada a apreciação judicial".

Ora, se a desconstituição dos atos administrativos de gestão está prevista no inciso II do artigo 130-A da CF, o disposto no §3º-F obviamente se refere aos atos administrativos da atividade fim, pois do contrário estaria a existir bis in idem, duas normas prevendo a mesma coisa, o que não faria qualquer sentido jurídico. Ocorre que atos administrativos da atividade-fim podem ser, por exemplo, a instauração de inquérito civil para apuração de improbidade administrativa, dano ambiental, ao consumidor, à saúde pública, bem como procedimentos investigatórios contra criminalidade organizada. Pela redação conferida no §3º-F, o CNMP teria poder de desconstituir os atos de investigação, impedindo o membro do Ministério Público de exercer sua função constitucional.

E há ainda um quarto ponto a ser abordado: insere, no artigo 128, inciso II da CF, a vedação do membro do Ministério Público "interferir nas instituições constitucionais com finalidade exclusivamente política".

A referida expressão, vaga e imprecisa, cria verdadeiro calcanhar de Aquiles ao membro do Ministério Público que, ao exercer a sua função investigativa, certamente será acusado de agir com "finalidade exclusivamente política". Ainda mais sabendo que a maioria dos membros do CNMP será composta por indicados do parlamento, inclusive por aquele que ocupará o cargo de Corregedor Nacional e que será o mesmo a apreciar a representação realizada pelo político por ele investigado.

Seja como for, na versão integral ou sob a nova roupagem soft do último relatório, a "PEC da Vingança" não tem nada a ver com "aprimoramento do CNMP", garantia de sua "eficácia", minorar a "sensação de impunidade" ou combater o "corporativismo". Não! O seu intento é outro! É apenas de controlar e subjugar a atuação do Ministério Público ao poder político.

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Eis a "PEC da Vingança", o Cavalo de Troia colocado à frente do Ministério Público, muralha até então intransponível na defesa da sociedade. É dessa muralha que os movimentos dos inimigos são observados, de onde se enxerga o cavalo oco, à espera de que as portas sejam abertas pelos incautos, seduzidos pelo discurso falacioso de que seria um "regalo" para a coletividade, mas que encobre, em sua essência, o desejo nefasto de destruição do combate à corrupção e ao crime de colarinho branco, a fim de que seja cultivada a terna e eterna impunidade...

"Cidadãos infelizes, que insânia vos cega? Imaginais porventura que os gregos já foram de volta, ou que seus dons sejam limpos? Ou esconde esta máquina muitos guerreiros, ou fabricada ela foi para dano de nossas muralhas, e devassar nossas casas ou do alto cair na cidade. Qualquer insídia contém. Não confieis no cavalo, troianos!"

Ou a "PEC da Vingança" sucumbe ou sucumbirão todos!

*Aluisio Antonio Maciel Neto, promotor de Justiça do MPSP. Mestre em Direito

[1] Virgílio. Eneida. Trad. Carlos Alberto Nunes. Brasília, Editora Universidade de Brasília; São Paulo, A Montanha, 1983.

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[2]https://www.cnmp.mp.br/portal/images/noticias/2021/mar%C3%A7o/corregedoria_atuacao.pdf. Acesso em 15/10/21.

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