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Patrimônio numa hora dessas?

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Por Claudia Feierabend Baeta Leal e Yussef Daibert Salomão de Campos
Atualização:
Claudia Feierabend Baeta Leal e Yussef Daibert Salomão de Campos. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

No mês em que o Brasil completa um ano das primeiras infecções e mortes pelo vírus SARS-COV-2, em uma pandemia mundial que já vitimou mais de 2,5 milhões de pessoas no mundo e mais de 280 mil brasileiros, é possível que dois servidores públicos federais com experiência em pesquisa e docência na área do patrimônio cultural questionem a utilidade de suas pesquisas e ações neste momento.

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O que, de fato, significaria patrimônio cultural em um ano marcado por centenas de milhares de mortes, que necessariamente incluíram e incluirão detentores e mestres do patrimônio cultural brasileiro, devotos, brincantes, usuários dos centros históricos, turistas, proprietários de imóveis tombados; em que se deu a morte do último indígena Juma, com a extinção de sua herança e memória; em que foram suspensas festas, celebrações, rituais do patrimônio cultural brasileiro; quando as atividades turísticas foram reduzidas a quase nada e aglomerações e atividades coletivas e comunitárias passaram a significar risco de vida?

Não bastasse pensar na própria efemeridade do patrimônio cultural diante da morte de representantes significativos da diversidade cultural brasileira e da suspensão, mesmo que temporária, de manifestações centrais para diferentes grupos, como o Carnaval, os cortejos, procissões, festivais, enfrentam-se também sérios entraves às políticas públicas para a gestão do patrimônio cultural brasileiro.

Com a dificuldade de mobilidade e locomoção, tornam-se menos frequentes as ações de fiscalização dos bens naturais e edificados protegidos; os inventários para a identificação de bens culturais, que dependem da presença de pesquisadores nos sítios, edifícios, e no seu contato com moradores, brincantes, fiéis, são impossibilitados; com a restrição de reuniões presenciais, a salvaguarda dos bens culturais de natureza imaterial, como festas e celebrações, é fortemente impactada.

Some-se a isso os cortes de orçamento para a cultura e o patrimônio, com a transferência esperada de recursos para a área da saúde e da assistência social, além da própria infecção e morte de servidores e pesquisadores da área do patrimônio, e a pergunta inevitável que parece se colocar é: patrimônio numa hora dessas?

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A referência à pergunta feita por Luis Fernando Veríssimo (1) já sugere nossa resposta, inspirada nos sentidos da poesia para tempos de crise: patrimônio - e poesia - numa hora dessas, sim, e exatamente - inclusive - pelo contexto que testemunhamos neste momento.

Entre as diversas contribuições que o patrimônio traz para a sociedade, está a incorporação da diversidade cultural e dos diferentes "modos de criar, fazer e viver" (como determina a Constituição Federal, no artigo 216) na dinâmica nacional, valorizando a variedade de sentidos para a alimentação, para o lazer, para a fé, para a saúde.

Simultaneamente a protocolos científicos rígidos no combate à pandemia, com isolamento e vacinas, é necessário atentar para as contribuições de formas variadas de organização. Há que se reconhecer a importância da coletividade e do espírito de comunidade dos diversos grupos que formam a sociedade brasileira, o que se manifesta por meio de festas e modos tradicionais de vida, mas também na solidariedade, no apoio mútuo, no trabalho coletivo, na economia solidária, no compartilhamento de bens, saberes e memórias.

Uma consequência disso é reconhecer patrimônio como elemento de desenvolvimento socioeconômico, problematizando noções desenvolvimentistas excludentes e atentando para as possibilidades criadas em formas alternativas de organização econômica e social.

Há que se aprender também com a capacidade de reinvenção das tradições para viabilizar a expressão, a manifestação, a devoção, a fruição, a brincadeira em novas formas, mas em continuidade com os sentidos cultivados por gerações.

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Não se trata, de forma alguma, de propor ou acatar um "novo normal" nestes tempos que demoraremos a superar, mas de identificar os sinais de resistência e resiliência das formas de vida, cultura e patrimônio que realmente importam para grupos que sobrevivem - há séculos - a grandes adversidades. Aliás, "novo normal" é uma expressão preguiçosa, que não explica nada e pasteuriza as diversas realidades sociais do Brasil.

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As próprias políticas de patrimônio e cultura imprimem ou motivam (ainda que muitas vezes de forma potencial) a intersetorialidade das políticas de pública: é reconhecido que patrimônio e cultura perpassam os mais diversos aspectos da vida - da fé à saúde, da vida doméstica ao espaço público, das práticas individuais às memórias coletivas, do privado ao público, do individual ao comunitário.

São também os campos do patrimônio e da cultural os que mais criam instrumentos, categorias e valores para incorporar, valorizar e legitimar a ação cultural e política dos grupos mais atingidos por essa pandemia: mulheres e homens pretos e periféricos, povos indígenas, populações tradicionais, ribeirinhas, quilombolas constam das políticas de patrimônio (ainda que muitas vezes de forma potencial, teórica e com grande necessidade de aprimoramentos) como sujeitos culturais, atores políticos legítimos e cidadãos cujos direitos devem ser assegurados, ainda mais numa hora dessas.

*Claudia Feierabend Baeta Leal é historiadora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), com lotação do Centro Lucio Costa: Escola do Patrimônio, onde atua como docente do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do IPHAN.

*Yussef Daibert Salomão de Campos é Professor da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás. Atua também nos Programas de Pós-graduação em História e Professor de História na mesma instituição. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult)

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(1) Veríssimo, Luis Fernando. Poesia numa hora dessas? São Paulo: Objetiva, 2010.

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