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Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

Para que serve o Direito ou a quem serve

Por Ricardo Prado Pires de Campos
Atualização:
Ricardo Prado Pires de Campos. FOTO: MPD/DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Quando se vê altas autoridades da República pregando abertamente contra a lei, a pergunta soa obrigatória; afinal, para que serve, então, o Direito?

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O Direito ou o ordenamento jurídico, representado pelo conjunto das leis e práticas cotidianas, tem por finalidade colocar um mínimo de ordem nas relações humanas. As pessoas não possuem sempre interesses amigáveis ou conciliadores, mas, muita vez, pretensões antagônicas e abusivas. Portanto, é preciso que haja delimitação das regras do jogo da vida. E principalmente que as pessoas as obedeçam.

Se as regras não são obedecidas, o que teremos é o caos. Se os motoristas não obedecerem os sinais de trânsito, ninguém chega a lugar algum. Se os engenheiros não fizerem os cálculos corretamente, os prédios não se sustentam. Se os médicos não cumprirem os procedimentos dos atos cirúrgicos, o resultado será tragédia.

Ora, se empregados e empregadores, se funcionários públicos e privados não cumprirem suas obrigações, o país não funciona, a sociedade não se desenvolve, e os problemas se agravam.

Se a população é obrigada a cumprir às determinações legais, por qual razão altas autoridades do país acreditam que podem descumpri-las impunemente?

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Infelizmente, isso têm ocorrido em todos os Poderes, uns mais, outros menos, mas em todos.

A Constituição impõe a transparência dos negócios públicos, mas atualmente só vemos tentativas de mais opacidade. Dados da pandemia tornados obscuros, orçamento secreto no Congresso, e até carteira de vacinação tornando-se segredo de Estado.

Muitos políticos reclamaram que o Ministério Público estava criminalizando a política, mas esqueceram que quem estabelece os crimes é o Legislativo e não o MP. O Ministério Público apenas os denuncia. No lugar de reverem os crimes (algumas revisões seriam difíceis de justificar), preferem impedir o MP de fiscalizar os políticos.

Estamos aplicando duas legislações distintas, uma para o povo, outra para as cúpulas dos Poderes.

É óbvio que isso gera indignação. Mais do que isso, as pessoas começam a acreditar que têm o direito a esse privilégio. Isso se resume muito facilmente, no célebre aforismo: "Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei".

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Recentemente, membros do Ministério Público passaram a ser processados porque cumpriram suas funções. Promotores são pagos pelo Estado para promoverem ações penais e ações civis públicas, mas no Rio de Janeiro, Curitiba e Mato Grosso, dentre outros, os membros do MP estão sendo desestimulados a cumprirem suas funções contra altas autoridades da República.

É óbvio que, nessas circunstâncias, já há quem pregue abertamente contra a lei, e acha que deve permanecer impune por isso.

Tenta-se justificar qualquer fake news deliberada, dolosa, como se fosse mero exercício da liberdade de expressão, quando a legislação prevê expressamente que calúnia, injúria e difamação são crimes contra a honra, quando a legislação prevê que constrangimento ilegal e ameaça são crimes de ação pública, que extorsão é crime contra o patrimônio.

Quando a lei deixa de ser parâmetro na Política, quem definirá as regras do jogo político?

Se o Ministério Público não pode interferir porque estaria sendo parcial (o MP sempre foi parte, deve defender a Constituição e as leis); se a Justiça Eleitoral não pode verificar os critérios de inelegibilidade e nem o sistema de votação, a quem caberá fazê-lo?

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Para que os Parlamentos fazem as leis, se eles as descumprem seguidamente, até em sua elaboração? As reclamações dos próprios parlamentares, junto ao STF, contra a supressão dos ritos procedimentais (o devido processo legislativo) têm se avolumado na atual gestão.

Para que o Presidente jura cumprir à Constituição, se ele deliberadamente a desrespeita? O princípio da dignidade da pessoa humana é desrespeitado a cada palavra dirigida aos profissionais da imprensa ou aos adversários políticos.

Para que serve o STF, se alguns de seus ministros, por vezes, se sentem no direito de serem a voz da Constituição em lugar de lerem o que nela está escrito? Alguns chegam a decidir individualmente contra a decisão do Plenário.

Não nos enganemos. A população não pode descumprir às leis. A população não pode escolher "a lei que pega e a que não pega", mas quem está na cúpula dos poderes acredita ter esse direito.

É preciso extinguir o foro privilegiado porque deixou de ser uma prerrogativa da função (uma proteção necessário ao exercício do cargo) para ser transformado no privilégio de descumprir à legislação.

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Óbvio que esse mau exemplo que vem de cima, contamina a população. O "jeitinho brasileiro" virou praga, erva daninha que, gradativamente, vai expulsando as boas plantações.

O Direito não é apenas um instrumento de solução dos conflitos sociais, onde vem perdendo espaço velozmente, mas, também, um instrumento de evolução pessoal.

Criar normas a partir de consensos sociais nos permite caminhar por rotas mais seguras, menos conflituosas e mais eficientes. Todavia, poucas pessoas parecem enxergar esse valor no Direito. Nosso processo civilizatório está em sério risco de retrocesso.

O Direito é visto, pelos próprios profissionais da área, como forma de profissão, como forma de "ganhar dinheiro". Acabam olvidando o aspecto cultural, o valor do Direito enquanto consolidação de práticas históricas que deram certo e que merecem ser mantidas e cultuadas como valores sociais porque nos impedem de cair nos precipícios.

Estamos descendo a serra sem utilizar os freios e o penhasco está logo a nossa frente.

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Acreditar que o caminho da sociedade se constitui apenas em evolução e desenvolvimento é ignorar os riscos da estrada.

O Direito é limite. A vida tem limites. A conservação da saúde exige esses cuidados; e a manutenção das relações sociais também.

Os poderosos, no entanto, detestam limites. A ganância idem. O conquistador não quer obstáculos. O ladrão, também não. Assim, a divisão de poderes se mostra essencial para impor o Direito e deve ser ampliada cada vez mais.

As pessoas, por outro lado, precisam aprender a prática da autocontenção: "tudo posso, mas nem tudo me convém". A dignidade das outras pessoas deve servir de Norte ao autocontrole. Para o Direito, não precisa amar ao próximo, basta respeitar. É mais simples, mas é imprescindível.

Por fim, resta trabalhar para que, apesar das dificuldades e dos desafios do momento, o processo civilizatório consiga prosperar e a aplicação do Direito possa ser igual para todos, independente do cargo ocupado.

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*Ricardo Prado Pires de Campos, mestre em Direito Processual Penal, procurador de Justiça aposentado e presidente do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD)

Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Acesse aqui todos os artigos, que têm publicação periódica

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