A covid-19 intensificou o debate sobre a privacidade e a proteção de dados pessoais no Brasil, quer em razão das diversas iniciativas legislativas para o adiamento da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), quer porque vem exigindo a imediata solução de controvérsias pelo Poder Judiciário.
Várias políticas públicas de combate ao vírus envolvem o compartilhamento de dados pessoais entre empresas privadas e entes públicos, para fins de práticas de monitoramento, vigilância, geolocalização e contact tracing, com o objetivo de impedir ou ao menos mitigar a contaminação generalizada da população.
E justamente essas medidas tiveram sua legalidade e legitimidade questionadas e levadas ao Poder Judiciário.
A Medida Provisória (MP) nº 954/2020, que dispõe sobre o compartilhamento de dados por empresas de telecomunicações com a Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para produção de estatísticas oficiais, é objeto de quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) propostas no Supremo Tribunal Federal (STF). Os Autores das ações alegam, em suma, que a MP viola a Constituição Federal por afrontar a dignidade da pessoa humana, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada e o direito ao sigilo dos dados.
A Ministra Rosa Weber suspendeu a vigência dessa MP liminarmente, após entender que a norma não delimita o objeto, finalidade e amplitude da estatística a ser produzida, e não esclarece como os dados serão efetivamente utilizados. Considerou, ainda, que a MP não apresenta os mecanismos para proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos ou utilização indevida.
Por maioria de votos, vencido o Ministro Marco Aurélio de Mello, o STF confirmou a suspensão da MP, por entender que a proteção de dados é direito resguardado pela Constituição Federal e seu tratamento deve se dar a partir de medidas que respeitem a razoabilidade, proporcionalidade e finalidade. Para os Ministros, da forma como editada, a MP oferece "enorme risco" à intimidade dos cidadãos, o que não pode ser admitido mesmo no sensível cenário de pandemia.
O julgamento é histórico e marca uma nova fase da proteção de dados pessoais no país, compreendida como direito fundamental e cujas balizas são notadamente os princípios previstos na LGPD (adequação, proporcionalidade, finalidade e autodeterminação informativa). A decisão traz, portanto, parâmetros importantes sobre a matéria antes mesmo vigência da Lei.
No Superior Tribunal de Justiça, houve impetração de Habeas Corpus Coletivo contra ato do Governador do Estado de São Paulo visando a imediata paralisação de funcionamento do sistema SIMI, que trata da parceria firmada com as operadoras de telefonia móvel para obter dados de celulares e auxiliar a identificação de aglomeração de pessoas.
Para a Ministra Relatora Laurita Vaz, não ficou demonstrado como o SIMI interferiria no direito de locomoção a justificar o habeas corpus proposto. A Ministra considerou, também, que, segundo as Operadoras e o Governo Estadual, os usuários nãos seriam especificamente individualizados no sistema de monitoramento, o que indica a importância desse tema de anonimização segura e eficaz no âmbito da proteção de dados pessoais.
Também contra o SIMI foram ajuizadas duas Ações Populares, em razão de alegada violação aos princípios constitucionais de privacidade e intimidade, especialmente porque os termos parceria da não teriam divulgados e não haveria anuência prévia e expressa dos usuários. Em um dos processos o Poder Judiciário obrigou o Governo de São Paulo a fornecer os termos da parceria, mas manteve sua aplicação.
Ainda, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou um Mandado de Segurança para excluir do sistema de monitoramento o autor da referida ação judicial, que comparou a medida governamental com a "tornozeleira eletrônica".
Também sobre a privacidade e proteção de dados, merece destaque a ação do jornal "O Estado de São Paulo" para ter acesso ao resultado dos exames do Presidente da República Jair Bolsonaro quanto à infecção pelo coronavírus. Para a magistrada responsável pelo caso, a divulgação do resultado dos exames estaria embasada no acesso à informação de interesse público, o que justificaria seu deferimento em decisão liminar.
A decisão foi objeto de recurso pela União, mas a determinação de divulgação do resultado do exame foi mantida em liminar pelo desembargador relator no Tribunal Regional Federal da 3 Região, que reafirmou não ser plausível a invocação de proteção à privacidade e intimidade, uma vez que a Lei de Acesso à Informação autorizaria a obtenção de resultados de exames, sem consentimento do interessado.
O debate tem, também, inegável relevância pois abrange os limites da privacidade e intimidade da figura pública, a proteção de dados sensíveis e o interesse público que justificaria sua relativização.
Todas essas discussões judiciais comprovam que, com ou sem LGPD, a proteção de dados já é uma realidade no Brasil. Na ausência da Lei, os Tribunais se antecipam epassam a balizar o entendimento sobre privacidade e proteção de dados no país.
*Patricia Helena Martins e Renata Mayer são, respectivamente, sócia e advogada sênior nas áreas de Contencioso, Tecnologia e Privacidade de TozziniFreire Advogados