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Pandemia e saúde pública: a nova ofensiva da União contra os governos estaduais

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Por José Eduardo Faria
Atualização:
José Eduardo Faria. FOTO: FELIPE RAU/ESTADÃO Foto: Estadão

Lida com a devida atenção, a Ação Direta de Inconstitucionalidade protocolada pela Advocacia-Geral da União (AGU) no Supremo Tribunal Federal em nome do presidente Jair Bolsonaro, solicitando a suspensão de lockdown nos Estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraná, parece ter sido escrita por quem precisa estudar mais lógica e hermenêutica jurídica.

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No campo da lógica, um dos problemas da petição está na incoerência de quem a patrocina. Embora Bolsonaro seja sabidamente um negacionista da ciência, a AGU alega, em seu nome, que as medidas adotadas pelos governadores não têm base científica "teórica ou empírica". Outro problema é modo como o artigo 5º da Constituição, que trata dos direitos fundamentais, foi interpretado pelo órgão, previsto sem qualquer ponderação ou balanceamento entre seus quase 80 incisos - como se cada direito previsto fosse absoluto e passível de simples juízo de subsunção, equivalendo a uma premissa maior totalmente delimitada em sua hipótese de incidência e consequência normativa, à qual fatos evidentes servissem como uma premissa menor, tomando-se por base a premissa maior, aplicando-a à premissa menor, chegando-se assim a uma conclusão necessária.

O número de incisos é muito alto e isso decorre do fato de que a Constituição tem um caráter aspiracional, uma vez que, promulgada menos de três anos após a saída dos militares do poder, ela buscava mudar e transformar as relações de poder, e não conservá-las com roupagem nova. É por isso que, ao consagrar um determinado tipo de liberdade e de direito, cada um desses incisos não é aplicável à maneira do tudo-ou-nada. Como há uma interação entre eles, a interpretação constitucional busca equilíbrio entre as liberdades e as garantias por eles estabelecidas, o que torna impossível, portanto, afirmar que cada direito é absoluto.

A petição da AGU se concentra, basicamente, nos direitos de locomoção e de trabalho. Afirma que a suspensão da política de isolamento social nos três Estados é necessária em face do "notório prejuízo que será gerado para a subsistência econômica e para a liberdade de locomoção das pessoas". Alega que as medidas tomadas por esses Estados não apresentam "técnica minimamente consensual sobre a eficácia da proibição de locomoção no horário noturno, em que o trânsito é sabidamente discreto". Por fim, afirma que o argumento dos governadores "é inadequado e despido de qualquer traço científico, traduzindo uma avaliação injustificadamente discriminatória do comportamento de pessoas que transitam pelo espaço público no período noturno".

Ao justificar as medidas de isolamento e lockdown tomadas, contudo, os governadores lembram que o direito à saúde é indisponível. Igualmente, alegam que, se o poder público tem a obrigação de não medir esforços para assegurar a "manutenção da vida", como determina a Constituição, inclusive tomando medidas restritivas drásticas de isolamento social, ele pode impor restrições sanitárias para evitar nova propagação do vírus.

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Não é difícil ver quem tem razão nesse embate judicial. Vistas à luz do bem comum, as restrições impostas pelos governadores são justificáveis na medida em que, ao conter a liberdade de ir e vir das pessoas, elas evitam a contaminação do resto da população. Por mais importante que seja a liberdade individual, cabe ao poder público a responsabilidade pela saúde da coletividade. Se em tempos de pandemia muitos cidadãos querem maximizar suas liberdades, saindo à noite, o poder público não tem outra saída a não ser proibir que o comportamento de alguns coloque em risco a vida dos demais.

A transferência da soberania do povo para o poder público está na base do Estado moderno.  Nesta perspectiva, a vontade geral vai muito além das vontades individuais, exigindo, por exemplo, intervenção dos diferentes braços do Estado, seja para neutralizar eventuais impasses decorrentes da colisão entre princípios constitucionais, seja para neutralizar crises econômicas e sanitárias. O que Bolsonaro e a AGU não entendem é que, se por um lado a Constituição garante a liberdade de sair de casa e de se locomover pelos espaços públicos, por outro essa garantia não confere liberdade para infectar.

Desde que o Estado democrático de Direito se consolidou, há um sentido de responsabilidade maior que limita a própria liberdade de locomoção, como forma de defender o interesse geral - no caso atual, por exemplo, tal interesse é inequívoco: deter o avanço da pandemia. Assim, quando a AGU invoca o direito de locomover e trabalhar dos cidadãos, ela não percebe que a simples imposição da vontade de uns sobre a vontade de outros pode levar à postura arbitrária de reivindicar como liberdade a realização de atividades que põem em risco a vida coletiva.

Portanto, se esses cuidados mínimos propostos pelos governadores forem suspensos, como Bolsonaro e a AGU pediram ao Supremo, a expressão "liberdade", que é citada em vários dos quase 80 incisos do artigo 5º da Constituição, correrá o risco de perder sentido. Isto porque poderá ser aplicável a qualquer coisa - inclusive como pretexto para governantes negacionistas da ciência que a invocam para justificar a "liberdade" que a população tem de não se vacinar.

*José Eduardo Faria, professor titular da Faculdade de Direito da USP e chefe do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito

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