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Os Tribunais Superiores e a pandemia

Por Caio César Bueno Schinemann
Atualização:
Caio César Bueno Schinemann. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Tornou-se lugar comum no Brasil reclamar da judicialização da política e do ativismo judicial, em especial quanto à atuação do Supremo Tribunal Federal. Críticas muitas vezes procedentes que, no mais das vezes, são oriundas dos poderes políticos democraticamente constituídos. Contraditoriamente, em um momento extremamente sensível como é a pandemia da covid-19, o Poder Executivo Federal parece querer alargar o escrutínio dos Tribunais Superiores sobre questões essencialmente políticas ao propor o Projeto de Lei nº 791/2020.

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Em trâmite na Câmara dos Deputados, o PL 791/2020 estabelece, dentre outras previsões, a possibilidade de acesso direto ao STF, STJ e TST (a depender da matéria discutida) por todas as pessoas jurídicas de direito público e dos Ministérios Públicos estaduais e da União para questionar e suspender os efeitos de quaisquer decisões judiciais relativas ao enfrentamento da covid-19.

Do Governo Federal aos menores Municípios do interior do Brasil, os Tribunais Superiores estarão de portas abertas a todos.

Há uma série de problemas nisso. O principal é que a ampliação da competência dos Tribunais Superiores implicará a indevida homogeneização de questões relacionadas ao enfrentamento da pandemia em uma federação extremamente heterogênea. Há políticas públicas que devem ser nacionais, mas há políticas que necessariamente devem ser locais.

O regime constitucional da saúde em âmbito federativo sempre foi esse. Ao julgar a medida cautelar da ADI 6341, o STF tornou expresso ao contexto da pandemia o que já era bastante claro: o enfrentamento da pandemia depende de disciplina geral e de abrangência nacional, o que é competência da União, mas de forma alguma isso poderia afastar ou prejudicar a competência concorrente dos Estados e Municípios para atuarem regionalmente.

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A reabertura do comércio, as requisições administrativas, a conformação das mais diversas políticas de ordem sanitária, para dar alguns exemplos, se darão de forma distinta em cada Estado e Município. A caneta de um Ministro de Tribunal Superior inevitavelmente acabará por tratar de maneira igualitária questões substancialmente diversas, muito em razão da quantidade de processos que acabarão por se concentrar nesses Tribunais.

O que o PL estabelece nada mais é que uma nova espécie de suspensão de liminar e suspensão de sentença, categorias que já existem há vários anos no direito brasileiro. São exemplos das várias prerrogativas do Estado nos processos judiciais. Consistem em mecanismos paralelos aos recursos judiciais que permitem ao Estado - e somente ele - questionar decisões judiciais que lhes são desfavoráveis mediante pedido direcionado ao Presidente do Tribunal respectivo, que decide sozinho.

A diferença fundamental é que, no modelo vigente, o pedido de suspensão é direcionado a um Tribunal local - o Tribunal estadual ou Tribunal Regional Federal -, e não a um Tribunal Superior. Pela atual previsão legal (Lei nº 8.437/92), caso o Presidente do Tribunal local indefira o pedido de suspensão, o Estado somente poderia acionar os Tribunais Superiores após julgamento de recurso contra a decisão denegatória da Presidência por órgão colegiado do próprio Tribunal local.

Garante-se acesso ao Tribunal Superior, mas somente após o devido itinerário no Tribunal de origem. O pedido de suspensão chega ao Tribunal Superior já com o ônus argumentativo de enfrentar três decisões contrárias. Permitir o acesso direto aos Tribunais Superiores desconsidera essa lógica.

A jurisdição brasileira é extremamente pulverizada, o que pode ser um problema. Tecnicamente, um Juiz de 1º grau de qualquer Vara Federal do país pode suspender atos do Governo Federal em uma ação popular proposta por qualquer cidadão - o que já aconteceu várias vezes. Em um contexto de pandemia isso tem potencial desastroso. Casos assim poderiam justificar o acesso direto a um Tribunal Superior em um contexto excepcional como o atual.

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Por outro lado, a jurisdição brasileira é pulverizada porque isso é uma necessidade. O Poder Judiciário precisar dar conta de um país de proporções continentais e inserto a um abismo de desigualdades sociais, econômicas e regionais. Há uma necessidade de pulverização para lidar com realidades tão distintas que se faz ainda mais presente em um contexto de pandemia. Isoladas em Brasília, as Cortes Superiores teriam uma enorme dificuldade de apreender as especificidades de cada rincão do país.

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Uma medida adequada para conformar o PL a esse contexto seria limitar o acesso direto aos Tribunais Superiores à União Federal, suas autarquias e MPU. É a União quem editará as políticas públicas generalistas, afinal - justamente aquelas em que a pulverização do Judiciário se faz mais perniciosa. Estados e Municípios continuariam submetidos à lógica atual de privilégio do Tribunal local, que melhor podem apreender as especificidades de cada região.

Em suma, é certo que Poder Judiciário será chamado a atuar de forma expressiva e constante no enfrentamento dessa pandemia. É necessário garantir que sua atuação seja dinâmica, rápida e específica, o que, infelizmente, não é contemplado pela redação atual do PL 791/2020.

*Caio César Bueno Schinemann, mestrando em Direito Processual na USP e sócio da área de Direito Administrativo do VGP Advogados

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