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Os impactos da covid-19 nas relações de consumo: quem deverá arcar com os prejuízos?

Por Gláucia Mara Coelho e Marina Piccolotto Nori
Atualização:
Gláucia Mara Coelho e Marina Piccolotto Nori. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

As empresas brasileiras têm vivenciado inúmeras situações difíceis em decorrência da pandemia causada pela covid-19. São dezenas de restrições aos negócios e infindáveis renegociações com parceiros comerciais e trabalhadores, em prol de um bem maior e que deve unir a todos. É preciso mitigar os potenciais efeitos devastadores que a contaminação descontrolada pela covid-19 poderá causar à saúde e a própria vida de todos, e lidar, com responsabilidade e serenidade, com os efeitos decorrentes dessas medidas.

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Nesse contexto, o posicionamento que vem sendo adotado pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) - responsável pelo planejamento, elaboração, coordenação e execução da Política Nacional das Relações de Consumo -, ao emitir notas técnicas esclarecendo as consequências e efeitos jurídicos nas relações de consumo neste período, é merecedora de aplausos.

Tal posicionamento é condizente com o cenário econômico que o mundo inteiro vem experimentando, incluindo o Brasil, o qual nunca foi então vivido: pessoas sendo privadas de sua liberdade de ir e vir e empresários sendo impedidos de exercerem sua atividade, e tudo de uma hora para outra. Na atual conjuntura, ninguém foi poupado: tanto os fornecedores, quanto os consumidores, estão sendo altamente impactados pelas medidas que vêm sendo adotadas para contenção do avanço da pandemia.

As consequências decorrentes dessas medidas vêm trazendo imensos desafios às relações de consumo. Embora o Código de Defesa do Consumidor possua dispositivos que buscam proteger o consumidor - parte reconhecidamente mais fraca nas relações qualificadas como de consumo - em cenários de incerteza e imprevisibilidade (como, por exemplo, o art. 6º, inciso V, que estabelece como direito básico do consumidor a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes), a realidade é que não se pode desprezar a enorme proporção que os efeitos decorrentes da pandemia vêm causando nessas relações, como também o fato de que nem o consumidor, nem o fornecedor possuem qualquer ingerência ou controle sobre um crise de tamanha magnitude.

Por esta razão, é louvável a postura ponderada que vem sendo adotada pela Senacon, por meio de suas notas técnicas emitidas recentemente, com orientações sobre como lidar com os impactos decorrentes da covid-19 em importantes relações de consumo.

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Com relação às instituições de ensino que tiverem as aulas suspensas em razão do risco de propagação da covid-19, a Senacon recomendou, em sua Nota Técnica nº 14/2020, que a melhor alternativa seria manter a prestação do serviço de forma alternativa, seja na modalidade à distância ou por meio de reposição das aulas presenciais em momento posterior. Dessa forma, a Senancon entendeu que somente seria cabível o cancelamento do contrato ou a redução da mensalidade nas situações em que não houver outra possibilidade de reposição da aula ou utilização de métodos online.

Para esses casos, a Senacon também deixou clara a sua orientação para que os fornecedores desses serviços procedam à restituição parcial ou total dos valores relativos aos contratos cancelados, mas com a recomendação para que seja adotada sistemática que "não comprometa economicamente o prestador de serviço". A Senacon foi expressa ainda em recomendar que os consumidores evitem pedidos de desconto de mensalidade, "a fim de não causar um desarranjo nas escolas que já fizeram sua programação anual, o que poderia até impactar o pagamento de salário de professores, aluguel, entre outros".

O equilíbrio das recomendações constantes da Nota Técnica referida acima soa evidente. Diante de um cenário tão devastador, que pegou a todos de surpresa, a melhor solução possível é que passa pelo esforço conjunto de todos os envolvidos: dos fornecedores desses serviços, que devem buscar alternativas para que o serviço continue a ser prestado dentro dos requisitos mínimos exigidos pela legislação específica aplicável, atuando sempre com responsabilidade e transparência; mas também dos consumidores desses serviços, ao exercitarem a compreensão de que o abrupto rompimento desses contratos, com a exigência de devolução de valores ou simples suspensão de pagamentos, sem qualquer consideração acerca das medidas mitigadoras adotadas pelo fornecedor, gera efeitos nefastos em toda a cadeia envolvida, com o impacto direto para professores e funcionários dessas instituições, o que não é bom para nenhuma das partes envolvidas.

Do mesmo modo, com relação ao setor de turismo, também visando a mitigação dos impactos econômicos neste setor, a Senacon emitiu nota à imprensa recomendando que as companhias aéreas, hotéis e de agências de turismo permitam a remarcação das viagens pelos consumidores sem custos adicionais. Mas também se recomendou aos consumidores que hajam com prudência, novamente evitando pedidos de reembolso sem qualquer tentativa de remarcação da viagem, considerando que "uma crise no setor hoteleiros e de aviação poderá trazer impactos futuros à economia".

O mesmo pensamento é encontrado na Nota Técnica nº 2/2020, quando a Senacon urge a todos que atuem com bom senso e prudência neste momento, "evitando-se medidas que não encontram respaldo jurídico e que podem prejudicar, no médio e longo prazo, os consumidores e o setor produtivo brasileiros".

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Por fim, também vale destacar a Portaria nº 15/2020, pela qual a Senacon determinou o cadastro de determinados grupos de empresas para viabilizar a mediação, via site consumidor.gov.br, dos conflitos de consumo que certamente advirão como consequência dos impactos trazidos pela covid-19. A preocupação aqui também é mais do que fundamentada, já que a utilização do poder judiciário deve se dar apenas em último caso. Afinal, é de uma clareza solar que os tribunais brasileiros não terão qualquer capacidade de dar conta de milhões de conflitos decorrentes dessas relações, advindos da pandemia.

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A Senacon não poderia ter sido mais feliz quando - ao tratar das relações decorrentes da cadeia de turismo e transporte, mas que seguramente se aplica a todas as relação de consumo - apontou que o que se espera no cenário atual é que todos os envolvidos atuem com "tranquilidade, transparência, razoabilidade e harmonia".

A imposição de todos os prejuízos para apenas um dos lados da relação - seja para os consumidores, seja para os fornecedores - não favorece a ninguém e é claramente injusta. A equação seguramente é difícil e implica desafios sem precedentes: de um lado, consumidores não podem ficar desamparados com os produtos/serviços previamente adquiridos e dos quais não podem usufruir plenamente; mas, de outro, fornecedores também não poderão conviver com cancelamentos múltiplos de contratos e devoluções imediatas de valores recebidos por uma prestação de serviço ou por um produto que a eles também não se permite realizar, uma vez que isso inviabilizaria a atividade empresarial no país e traria um efeito catastrófico. Somente uma postura colaborativa entre todos os envolvidos nessa ampla cadeia - que, ao final, é a grande proposta trazida pela Senacon - pode permitir alguma luz no fim do túnel.

*Gláucia Mara Coelho e Marina Piccolotto Nori são, respectivamente, sócia e advogada da área de Contencioso do Machado Meyer Advogados

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