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Os direitos de crianças e adolescentes na perspectiva orçamentária

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Por Gustavo Queiroz e Débora Reis
Atualização:
Gustavo Queiroz e Débora Reis. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Neste ano, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 30 anos. Reconhecido como o principal marco legal pelos direitos de meninas e meninos brasileiros, ele assegura o princípio da prioridade absoluta. Isto quer dizer que as políticas públicas devem considerar, primeiro, o público infanto-juvenil. É inegável reconhecer que tais princípios constitucionais transformaram a concepção de infância no Brasil, mas eles também reivindicam um desafio perene: a efetivação do "direito a ter direitos", especialmente às crianças e adolescentes que se encontram em situação mais vulnerável.

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A aprovação do ECA partiu dos apelos de uma constituição democrática, alinhado aos marcos internacionais como a Convenção dos Direitos da Criança (1989), e em resposta às demandas de movimentos sociais como o Movimento de Meninos e Meninas de Rua, a Pastoral do Menor e o Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Resultado de tamanha articulação, o artigo 4º do ECA foi corajoso. Ele abre portas, por exemplo, para definir que a proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes é uma responsabilidade de todos, e deve sempre privilegiar este público na constituição das peças orçamentárias.

Neste contexto, a frase "lugar de criança é no orçamento público" seria uma afirmação clichê, se tal obrigação fosse integralmente assegurada. É consenso entre organizações da sociedade civil que investir na infância não é somente uma obrigação constitucional, mas um investimento necessariamente inteligente e comprovado em inúmeros estudos. De acordo com o coordenador do programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, Pedro Hartung, isto não significa que a criança deve ter um mundo só para ela. "Colocar a criança em primeiro lugar é pensar nela na execução de qualquer coisa que você for fazer na gestão pública", enfatiza.

Os dispositivos legais existem e muitas organizações desenvolvem metodologias para incidir sobre o tema da infância nas peças orçamentárias. Porém, nem sempre a alocação desses orçamentos por parte da administração pública segue as diretrizes dos Conselhos de Direitos e seus planos decenais. Um cenário diferente do esperado após 30 anos de Estatuto. "Não é só uma questão de responsabilização do gestor público, é uma questão da visão global, de como a gente não internalizou o dever constitucional de colocar a criança em primeiro lugar", conclui Hartung.

Políticas baseadas em evidências

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Um estudo do INESC, baseado nos dados do orçamento federal, expõe o desaparecimento da prioridade absoluta na execução dos orçamentos para a infância. Entre 2016 e 2019, nenhum recurso previsto para políticas públicas de atenção a crianças e adolescentes foi executado integralmente. Em 2016, por exemplo, somente 30% do valor orçado para a educação infantil foi investido. Três anos depois, a crise foi vivida pela educação básica: dos R$ 24 bilhões previstos para esta subfunção, 42,85% não foram investidos. Em paralelo, 2,8 milhões de crianças e adolescentes estavam fora da escola.

Mais recentemente, os impactos sobre o investimento em saúde e educação, por exemplo, em temas como a abrangência das vacinas, o teto dos gastos orçamentários e a existência de percentuais de investimento do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) são exemplos de questões relevantes para a infância e adolescência brasileiras. A pandemia do novo coronavírus escancara ainda mais a necessidade de cumprimento destas prerrogativas legais.

Em 2018, uma pesquisa da Fiocruz que envolveu instituições brasileiras, americanas e britânicas, constatou que medidas de austeridade estariam diretamente relacionadas ao aumento da mortalidade infantil, o que significa um incremento de 20 mil óbitos evitáveis no Brasil até 2030. Durante a pandemia do novo coronavírus, organizações da sociedade civil enviaram documentos ao Supremo Tribunal Federal e à Organização das Nações Unidas pedindo a revisão da Emenda Constitucional 95, conhecida como Teto dos Gastos, que limita o investimento em algumas pastas. Em qualquer cenário, é sabido que não é retirando recursos destinados à população infanto-juvenil que devemos ter um retorno promissor hoje e no futuro.

De acordo com Hartung, o momento de crise retoma a urgência de investimentos anticíclicos. "Num momento de vulnerabilidade social da população é necessário ampliar o investimento social para que a população tenha uma rede de proteção maior para passar aquele período de desemprego com uma segurança para retomar rapidamente a economia, quando possível", afirma. Por isso mesmo, o investimento social não é gasto, ele nunca está em posição de exterioridade em relação à economia. Investir na infância é, justamente, um processo de equalização das oportunidades e desenvolvimento econômico, social e cultural.

Ciclos orçamentários

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Garantir este lugar da criança nas políticas públicas, inclusive de sua participação nos processos decisórios, implica na incidência em todo o ciclo orçamentário, como está expresso no Comentário Geral nº 19 sobre os princípios do orçamento público para promover os direitos da criança (2016), publicado pelo Comitê dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas. São eles: a eficácia, a eficiência, a equidade, a transparência e a sustentabilidade. Não se trata apenas de garantir o recurso, mas de realizar uma boa gestão pois, além de investir mais, é necessário investir melhor.

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Estes princípios funcionam como uma estratégia para planejar, aprovar, executar e acompanhar os resultados das políticas em relação a sua abrangência e qualidade, para que cheguem a quem precisa no momento necessário, imprimindo transparência em todo esse processo. Importante ressaltar que informações disponíveis e de fácil acesso promovem a integração entre os poderes e a participação da sociedade, para o exercício do controle social. O interesse final é de que não haja corrupção e que a boa gestão permita a alocação de mais recursos, diminuindo as extensas barreiras impostas a grupos vulneráveis de crianças e adolescentes, para que acessem seus direitos.

Nas diretrizes listadas também está considerado o princípio geral da Convenção sobre o "direito à não discriminação", que compromete a gestão pública a investir de forma equitativa, sem deixar de contemplar as diferenças e desigualdades entre as crianças e adolescentes nos mais diversos contextos sociais, econômicos e culturais. Por fim, a sustentabilidade exige que os governos mobilizem receitas e gerenciem os recursos públicos com vistas à continuidade das políticas e programas, como políticas de Estado, com visão de médio e longo prazo.

Iniciativas em desenvolvimento

O estado do Paraná, por exemplo, se tornou protagonista no tema desde a publicação da Resolução nº 14/2009 e da Instrução Normativa nº 36/2009 pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE). Estes mecanismos legais estabelecem procedimentos para elaboração e execução orçamentária dos municípios sob a luz do princípio da prioridade absoluta, garantido desde o art. 227 da Constituição Federal.

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Em paralelo, o Fórum dos Direitos da Criança e do Adolescente do Paraná destaca que em 2016, por exemplo, dos valores previstos para o Ensino Médio, somente 19,1% foram executados. Ainda, segundo dados do Censo Escolar de 2017, 45% das escolas públicas no Estado não dispõem de esgoto via rede pública, 45% não possuem água filtrada, 46% não têm quadra de esportes e em 44% não há bibliotecas.

Os dados evidenciam que as prerrogativas legais devem, sempre, caminhar juntas com mecanismos de transparência e monitoramento. A complexidade das peças orçamentárias, muitas vezes, dificulta este processo. Em todas as esferas da federação há que se estabelecer mecanismos para a tradução na leitura e parâmetros de análise para o monitoramento da garantia de direitos nas políticas públicas, papel muitas vezes assumido pelas organizações da sociedade civil.

Pensando nisso, o Ministério Público do Estado do Paraná e o Centro Marista de Defesa da Infância desenvolveram uma metodologia para visualização de dados sobre os orçamentos municipais para a infância e adolescência no Estado. A política para a infância, muitas vezes, está distribuída em uma série de ações que dificultam a descoberta de que se trata, de fato, de investimento exclusivo. O Projeto OCA tem por objetivo demonstrar à sociedade os investimentos para infância e adolescência dos municípios a partir de informações disponibilizadas pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-PR).

Os dados apresentados na plataforma demonstram o orçamento exclusivo para a área da infância e da adolescência em cada cidade do Paraná (a exemplo dos recursos investidos na Educação Infantil), e também o orçamento não exclusivo (como programas de habitação popular, que atingem toda a família e não apenas crianças e adolescentes). São apresentados ainda, os valores referentes a gastos não exclusivos com infraestrutura (vias públicas, praças, entre outros), que acabam por beneficiar indiretamente este público.

Tais iniciativas buscam fortalecer os processos de elaboração das leis orçamentárias, instrumentos que viabilizam o cumprimento da prioridade absoluta, por meio de demonstração transparente da alocação de recursos públicos destinados à população infanto-juvenil ao identificar direcionamentos que estruturam e qualificam as políticas públicas e permitem a manutenção, criação e ampliação dos serviços e programas de atendimento às crianças, adolescentes e suas famílias.

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É fundamental que toda sociedade participe da elaboração e acompanhe a execução dos orçamentos, pois é na peça orçamentária que se identifica o cumprimento à proteção integral e à prioridade absoluta. Além disso, é necessário que assuntos relativos ao orçamento público sejam debatidos nos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, espaços que visam a deliberação de políticas públicas e a discussão de soluções para os problemas que causam a violação dos direitos de crianças e adolescentes.

Caminhos para a efetivação

São caminhos para a efetivação destes direitos: transparência e controle social. Conhecer o ciclo orçamentário e seu processo de formulação, aprovação e execução contribui para o controle social e incidência política da sociedade civil. Como previsto no ECA e no Comentário Geral, a destinação privilegiada de recursos é de responsabilidade dos Estados ao adotarem medidas necessárias para mobilizar, alocar e gastar recursos financeiros suficientes para que crianças e adolescentes tenham seus direitos garantidos.

Segundo Hartung, é importante que "a aprovação das leis orçamentárias anuais possa ter um amplo acompanhamento da população e que possamos traduzir essa tramitação anualmente, que os parlamentares sejam acompanhados na apresentação de emendas parlamentares, que se abra espaço para orçamento participativo, inclusive dessas emendas, e o próprio Executivo criar um orçamento em que a população defina onde investir, com a presença de crianças e adolescentes".

Além disso, em todos os níveis: municipal, estadual e federal, um planejamento efetivo, baseado em dados e análises, transparente e participativo, torna mais viável a ampliação dos recursos, a revisão dos direcionamentos e a orientação das ações, atualizado com as reais necessidades das crianças e adolescentes em diversas áreas e especificidades e em consonância com os planos decenais aprovados pelos Conselhos de Direitos.

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A capacitação do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (Resolução nº 113/2009 do CONANDA) sobre o funcionamento do orçamento e a implicação do administrador para que demonstre em seus orçamentos a prioridade absoluta de crianças e adolescentes é urgente. Assim, a qualificação sobre o orçamento público permitirá a participação ativa da sociedade em todo o processo orçamentário, contribuindo na análise e controle dos investimentos destinados a crianças e adolescentes. Deve se observar não apenas a quantidade, mas a qualidade e o uso adequado dos recursos públicos, para que sejam eficazes, eficientes, equitativos, transparentes e sustentáveis.

*Gustavo Queiroz e Débora Reis, especialistas do Centro Marista de defesa da infância

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