Assim, é muito importante compreender e aceitar que a gestão pública já vinha cuidando do conjunto de cidadãos em estado permanente de adição a drogas na área. Uma série importante de protocolos sociais e médicos foram aplicados, muito provavelmente com resultados aquém do desejável e a geração de outros problemas que põem em risco a vida dos usuários de crack. Portanto, como em qualquer tratamento, chegou-se ao estágio em que se faz necessária a adoção de medidas mais firmes, previstas nos protocolos médicos e na legislação pertinente.
Nas relações privadas, cabe aos médicos avaliar a situação do paciente diante do tratamento e expor à família a necessidade da medida de internação, inclusive a internação involuntária e compulsória. Na esfera pública, a mesma missão cabe aos responsáveis pela saúde pública. Numa interpretação bem ampla, o direito de consumir drogas até à morte dentro de sua casa, não se espelha na rua, à frente de todos. Pior, ainda mais quando psiquiatras e demais conhecedores do tema têm plena ciência da profunda perda de autocontrole que o ser humano atinge nas condições de consumo ininterrupto de drogas.
A questão do tratamento de drogas está diretamente ligada à uma visão de suicídio e eutanásia em detrimento de tentar manter a vida ao máximo custo. Feitas estas considerações, é importante termos muito claro os cinco desafios que os profissionais da saúde envolvidos para lidar com o tratamento em internações compulsórias terão pela frente para obterem sucesso na iniciativa.
Primeiro, tempo para uma mínima desintoxicação orgânica, que numa visão mais comum duraria cerca de 40 dias. Mas, a ciência tem demonstrado que as grandes mudanças e efeitos no cérebro humano ocorreriam em cerca de três meses de abstinência e isto, certamente, envolve consequências claras da vontade do indivíduo sobre si. A partir de recursos para cuidar dos efeitos decorrentes da ausência da droga, este período é essencial para o paciente recuperar o mínimo domínio da cognição para saber quem já foi, quem é agora e que pode escolher como será seu futuro. Portanto, a questão importante será a capacidade do paciente em, ao desenvolver a cognição, estabelecer um pensamento crítico sobre a condição de sua doença.
Segundo, acesso a terapias, de forma contínua, que permitam uma mínima reordenação social. Em verdade, ninguém para de usar drogas pelos problemas decorrentes do vício, mas sim por acreditar que a vida será certamente melhor sem o consumo de drogas ou álcool. Logo, a questão está ligada diretamente aos valores que permitem ao dependente químico enxergar uma vida mais satisfatória.
Terceiro, ter-se consciência de que a compulsão que faz alguém tornar-se adicto a drogas passa muito longe de tragédias pessoais. Na verdade, está colado numa realidade comprovada por experiências clínicas: o consumo de drogas é o encontro com o prazer imediato. Um estágio de nirvana permanente. A busca por um estado de euforia sem fim.
Quarto, os pacientes poderão sofrer recaídas num período dentro dos próximos seis meses a partir do momento em que tiveram a proposta de parar o consumo de substâncias químicas. Não serão todos que terão recaídas, mas a probabilidade daqueles que recaem já nos seis primeiros meses é de 75%.
Quinto, o recuperado do vício precisara tornar-se um vigilante de si mesmo. Ter acesso a tratamento psicológico capaz de lhe mostrar a importância de se afastar do ambiente que lhe encaminhou ao vício. Muitas vezes isso significa se afastar de coisas que vão além das ruas. Compreende estar à distância dos amigos e, às vezes, da própria família.
Diante dos estímulos da vida, uma pessoa pode encontrar dificuldades de responder de forma satisfatória aos obstáculos. O elemento fundamental será a postura que adotar para ter comportamentos construtivos em detrimento da busca por euforia, excitação ou anestesiamento dessas dificuldades a todo custo. Independentemente do tamanho do desafio e de sua intensidade, o tempo, a condição mais importante no tratamento da dependência química, é necessário. Pois é preciso de tempo para realizar todas essas transformações, bem como o imprescindível apoio dos membros da família, da sociedade, dos meios de saúde, para poder trazer essas pessoas engajadas em sair da Cracolândia.
*Cirilo Tissot, médico psiquiatra especialista em dependência química e diretor técnico da Clínica Greenwood