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Orçamento e Constituição em conflito

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Por Rodrigo Medeiros de Lima
Atualização:

Rodrigo Medeiros de Lima. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

O imbróglio em torno do projeto da Lei Orçamentária Anual de 2021, somente aprovado pelo Congresso Nacional no último dia 25, tem estado diariamente presente em reportagens e artigos de opinião nos meios de comunicação, em vista de possíveis - e potencialmente graves - implicações jurídicas, políticas e até econômicas.

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Não bastasse a ausência de uma lei orçamentária, passados mais de três meses do início do exercício financeiro, o projeto aprovado traz nó de difícil desate.

Ele resulta de artifício adotado pelo relator do projeto, chancelado pela maioria dos deputados e senadores, para ampliar o espaço de despesas discricionárias no orçamento sob o teto de gastos, no qual devem caber as despesas primárias federais, obrigatórias e discricionárias, com poucas exceções. Para tanto, foram parcialmente canceladas dotações pertinentes a despesas obrigatórias, permitindo que despesas discricionárias fossem incluídas em seu lugar, majoritariamente emendas parlamentares. O espaço fiscal assim remanejado foi de R$ 26,5 bilhões.

Lançou-se mão do expediente diante de proposta orçamentária que já faceava o teto, que se encontra, para o exercício financeiro de 2021, no patamar de R$ 1.485,9 bilhões.

Os cancelamentos incluem despesas com abono salarial, seguro-desemprego e benefícios previdenciários, entre outras. Mesmo em se tratando de despesas obrigatórias, sua redução é possível, caso se conclua estarem superestimadas na proposta orçamentária. Contudo, não é esse o caso, conforme indicam as estimativas mais atuais do próprio governo, no seu último Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias[1], e da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal (IFI)[2]. Estavam, antes disso, desatualizadas e, portanto, já subestimadas, em virtude de uma inflação em 2020 maior do que a esperada, à qual são indexados o abono salarial, o seguro-desemprego e a maior parte dos benefícios previdenciários. Essa subestimação, portanto, só fez se agravar.

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Por evidente, a aderência do documento legislativo à regra do teto é estritamente pro forma. Em substância, há potencial infringência constitucional, que reclama, em tese, o veto jurídico do Presidente da República, ainda que parcial.

Impor-se-á, de todo modo, ao Poder Executivo buscar a suplementação dessas despesas obrigatórias, sob pena de vir a inadimplir obrigações legais e até constitucionais da União.

Em princípio, as despesas discricionárias adicionais, aprovadas em extrapolação do teto, mesmo se sancionadas, escapariam da obrigatoriedade de execução do orçamento, que cede em face do dever de cumprimento dos limites de despesa (art. 165, §§ 10 e 11, da CF)[3]. Persistem, contudo, eventuais compromissos políticos, que dificilmente encontrarão equacionamento no orçamento, ao menos se observadas as correspondentes restrições constitucionais.

Por outro lado, a integral suplementação das despesas obrigatórias subestimadas não prescindirá da subtração de dotações orçamentárias constantes no projeto aprovado pelo Congresso - para além daquelas ao final adicionadas pelo relator, já que a subestimação lhes é superior. Do contrário, o montante total da despesa primária autorizada virá a extrapolar o teto, o que, por si só, inobserva o art. 107, § 5º, do ADCT.

O valor do ajuste estimado pela IFI, sob seu cenário base, é de R$ 31,9 bilhões. O Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias do governo, anterior à aprovação do projeto (e que não considerou o último acréscimo), já apontava um ajuste necessário de R$ 17,574 bilhões.

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Eventual veto pode facilitar essa tarefa (se não rejeitado pelo parlamento), já que o cancelamento posterior de emendas parlamentares, independentemente de lei nova, envolve uma série de exigências, dentre as quais a concordância do autor da emenda (cf. art. 4º, § 7º, do projeto aprovado). Inexistindo tal concordância, restará ao chefe do Poder Executivo encaminhar projeto de lei para tal fim e trabalhar para uma difícil aprovação.

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Por sua vez, as despesas discricionárias de interesse do Executivo são sabidamente reduzidas, sendo muito improvável que ali se encontre espaço suficiente para o ajuste necessário sem que se embarace o próprio funcionamento da administração pública.

Portanto, mesmo podendo o Poder Executivo contingenciar emendas parlamentares, tal medida não será suficiente à necessária suplementação das despesas obrigatórias à luz do § 5º do art. 107 do ADCT sem o cancelamento de despesas.

E se não obtiver o aval do autor da emenda ou autorização legislativa? Poderá buscar a aprovação de créditos suplementares, independentemente da subtração de outras dotações - em contrariedade à literalidade da regra constitucional -, como forma de viabilizar o cumprimento de relevantes obrigações legais e constitucionais, sem exceder, porém, o teto no que tange às despesas efetivamente executadas?

Lembrando que constitui crime de responsabilidade ordenar ou autorizar a abertura de crédito sem fundamento na lei orçamentária ou em crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal (art. 10, item 6, da Lei 1.079/1950).

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Antes da EC 109/2021, proveniente da chamada PEC emergencial, a situação de descumprimento do art. 107, § 5º, do ADCT, ao menos ensejaria a incidência dos mecanismos de contenção da despesa obrigatória do art. 109 do ADCT. Hoje não mais. Poderiam funcionar, inclusive, como incentivo à readequação da despesa, pelos interesses que contrariariam. A alteração constitucional associou aqueles "gatilhos" a um outro marco fiscal, o que, conforme já havia advertido pela IFI[4], provavelmente só postergaria o seu acionamento, dada uma maior probabilidade de rompimento do próprio teto, cuja iminência ora se vislumbra.

Para além das regras fiscal-orçamentárias, há valores constitucionais outros igualmente em jogo, a exemplo do direito alimentar de beneficiários da previdência social, apenas para exemplificar com o mais impactante deles.

Em não se chegando a um denominador comum ou caso este envolva alguma forma de desvirtuamento da norma constitucional, o Supremo Tribunal Federal poderá vir a ser chamado para arbitrar o conflito, no exercício de sua jurisdição constitucional.

Aliás, tal possibilidade está no cerne da opção por inserir regras fiscais no texto constitucional, como a que se verificou na Emenda Constitucional nº 95/2016, que instituiu o teto de gastos.

*Rodrigo Medeiros de Lima, membro do Ministério Público junto ao TCU. Mestre em Direito Financeiro pela Universidade de São Paulo

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[1] Relatório datado de 22/03/2021. Disponível em: https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO:38084.

[2] Veiculada na sua Nota Técnica nº 46, de 29/03/2021. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/586456/NT46.pdf.

[3] Isso porque essas despesas discricionárias adicionais, conforme consignado em nota técnica da IFI, não se enquadram como emendas parlamentares individuais ou de bancada, cuja possibilidade de não execução é mais restrita, nos termos dos §§ 11, 12 e 18 do art. 166 da CF. Daí serem chamadas de emendas impositivas.

[4] Em seu Relatório de Acompanhamento Fiscal de 22/03/2021. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/586156/RAF50_MAR2021.pdf

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