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Onde foi parar essa vontade?

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Por José Renato Nalini
Atualização:
José Renato Nalini. FOTO: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO Foto: Estadão

Nestes dias conturbados de guerra externa, chamada "operação" pelo invasor e de guerra interna, chamada "conflito de narrativas", a possível paz de espírito reside na lição imemorial dos ancestrais. É hora de ler os clássicos. Tão esquecidos quanto sábios. Hoje penso em Sêneca, nascido no ano 4 de Augusto, em Córdoba, Espanha, mas cidadão romano porque o Império se expandira por quase todo o planeta.

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Em sua obra "Cartas a Lucílio", ele escreve: "Aquilo que pode fazer de ti um homem de bem existe dentro de ti. Para seres um homem de bem, só precisas de uma coisa: querer".

Que função fundamental se confere à vontade! Algo que remanesce até hoje, quando se fala em "querer é poder". Na verdade, Sêneca é um pragmático. Parece partir do pressuposto de que não é necessário explicar do que exatamente está a falar. Vontade seria algo inato, intuitivo e experimentado por todos os racionais. Quase que um asserto: ser homem é ter vontade.

Tudo leva a crer que Sêneca escrevesse, primeiramente, para ele mesmo. Ou para um grupo muito seleto, muito qualificado de pessoas para as quais não seria preciso abordar conceitos básicos, pois o conhecimento deles seria pressuposto ao interesse despertado pela leitura de seus escritos.

O que se pode hoje extrair de sumamente importante na obra de Sêneca é o seu caráter ético. É aquele pensador que pretende inocular em seus seguidores uma crença inabalável em suas convicções. O resultado é uma vontade férrea, capaz de superar qualquer obstáculo que a ela se anteponha.

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Em Sêneca, a ética não é uma teoria ou retórica diletante, para adornar discursos ou parolagens. A ética é prática. Um exercício diuturno para o crescimento interior. Isso é plenamente factível para todos, bastando que haja aquela vontade já mencionada.

A experiência haurida na humanidade mostra que podem conviver pessoas de múltiplos graus de aprimoramento, nessa escalada rumo à perfeição. Existem seres diferenciados, modalidade posteriormente descrita por Tomás de Aquino como "excellentia naturae", espécimes próximos à perfeição. Mas outros encontram-se em gradação inferior. Sêneca chega a mencionar o "sábio perfeito", cujo antípoda é o "estulto", o incipiente. Entre eles, os que tangenciam a sabedoria, os que renunciaram aos vícios mais graves, mas que ainda não chegaram ao ápice da virtude e os que, em escala ainda inferior, livraram-se de alguns vícios, mas não de todos.

Na linguagem de Sêneca, "quem vai progredindo no estudo da filosofia pertence ainda ao número dos não sábios, embora esteja a uma grande distância do comum dos mortais. Mesmo entre os estudiosos da filosofia existem consideráveis diferenças, há autores que dividem tais estudiosos em três classes. A primeira classe abarca aqueles que, embora ainda não atingindo a sapiência, já se encontram muito perto de o conseguir. São os que se libertaram já das paixões e dos vícios e adquiriram os conhecimentos necessários a esse fim, sem conseguirem ainda prosseguir nessa via de confiança. A segunda classe compreende aqueles que conseguiram libertar-se das principais enfermidades da alma e das paixões, mas não a ponto de gozarem definitivamente de um estado de perfeita tranquilidade. Por outras palavras, estão ainda sujeitos a retroceder ao estádio precedente. A terceira classe já está liberta de numerosos e consideráveis vícios, mas ainda não de todos".

Essa tópica, ou essa tipologia, deriva da observação da espécie humana. Todos conhecemos seres esplêndidos, aqueles que nos fazem acreditar no mais absoluto sucesso do projeto humano. Outros que estariam na faixa da normalidade: com defeitos, mas também com qualidades. Enfim, a categoria daqueles em que dificilmente enxergamos virtudes, mas onde o primeiro contato é com o polo oposto a elas.

A esperança para os humanos é que todos somos capazes de reverter o quadro desfavorável e reencetar a rota da perfectibilidade. Muitos se tornam exemplos de superação. Caem e se levantam. Dão a volta por cima, como diz o poeta popular. E para isso é imprescindível dispor daquela força que Sêneca diz existir no interior de cada alma. Aquilo que pode fazer de ti um homem de bem, está dentro de ti. Chama-se vontade!

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Quando se pensa na situação mundial, com guerras inacreditáveis, violência, crueldade, exclusão e preconceito, a vontade é de perguntar: "Onde foi parar essa vontade que Sêneca enxergava dentro de cada ser humano?".

*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2021-2022

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