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O xadrez atuarial da previdência dos servidores

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Por Alexandre Manir Figueiredo Sarquis
Atualização:
Alexandre Manir Figueiredo Sarquis. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

"Percebe-se que o estudante superou certo nível no xadrez quando passa a cogitar pequenos deslocamentos da torre" - Marco Antônio Barbosa

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Ao menos é assim que me recordo da lição do mestre quando eu era um enxadrista iniciante no clube chapecoense, tantos anos atrás. À época, a mensagem apenas me impressionou como um enunciado enigmático. Eu sabia repetir, não tanto explicar. Com o tempo, submergiu em um recôndito da mente, onde memórias queridas decantam. Dois fatos recentes a reavivaram na lembrança, entretanto.

O primeiro foi minha experiência ensinando o jogo às minhas filhas. Elas se apressam em destravar as torres, menosprezando a estrutura de peões, somente para precipitar a poderosa peça ao centro do tabuleiro, perdendo-a prematuramente, revés do qual não convalescem. Por vezes, chateadas, pedem a torre de volta.

Sim professor, as pequenas melhorias de posição paulatinamente se acumulam e acabam por sobrepujar o oponente mais adiante. Agora vejo. Obrigado. Acaso se tratasse de um jogo de vencer logo aos primeiros lances, se irrelevante o que viesse depois, talvez a aventura se justificasse, mas não é assim. O jogo prossegue após o afogadilho que caracteriza seu início.

Percebi, entretanto, que as torres - e o xadrez - podem funcionar como alegorias para os extraordinários dilemas que nos oprimem enquanto pessoas, instituições e estados, na disputa pelos escassos bens da vida. Uma disputa que amiúde envolve renúncia de satisfação presente em favor de consolidações e avanços que podem parecer pífios, mas, confia-se, acumular-se-ão, e favorecer-nos-ão depois, no inescrutinável porvir. O que me leva ao segundo fato.

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Há um grande compromisso financeiro com a previdência social dos funcionários públicos brasileiros. Um monolito de surpreendentes dimensões que se estira no tempo, encobrindo o sol das contas públicas. Há três formas de evidenciar o estado dessas obrigações. Ou se reconhece uma despesa continuada, caso em que o gasto deve ser incluído na Despesa Total com Pessoal; ou se reconhece uma dívida futura, caso em que deve ter apurado o valor presente na Dívida Consolidada; ou, ainda, se houver reserva atual de fundos aptos, livres e suficientes - a melhor situação de todas - o passivo líquido nem mesmo existe, e a sombra se levanta.

Cada uma dessas estratégias encontra prescrições e limites na Lei de Responsabilidade Fiscal: a despesa com pessoal não pode ultrapassar 60% da receita (art. 19, III); a dívida não pode ultrapassar 120% da receita (art. 30, I c/c art. 3º, II resolução SF 40/01); e os fundos ficam definitivamente retidos, não podendo ser devolvidos para o ente (art. 43, §2º, II c/c art. 167, XII CF/88).

Em nossa pequena alegoria enxadrística, esses fundos aptos, livres e suficientes, cumprirão o papel de torre. Trata-se da reserva do plano previdenciário que, muito embora pareça forte na desesperadora situação em que nos encontramos, em verdade é frágil, vocacionada a frutificar ao seu tempo e modo.

Há iniciativas para destravar as torres, sacrificando-as prematuramente ao centro do tabuleiro. Refiro-me à alteração do art. 19, §1º, VI, "c" da LRF - já realizada pela Lei Complementar 178/2021 -, à alteração do art. 60 da Portaria 464/2018 - ainda em fase de análise - e à prática de contabilizar receitas futuras - tais como royalties - como se fossem recursos atuais e livres. Todas, em variadas medidas, embaralham os conceitos de dívida, fundos livres e despesa de pessoal que, assim misturados, podem vir a ser contabilizados de forma a escapar às graves consequências estabelecidas em lei.

Quanto à vontade de sacrificar a torre ao início do jogo, parece-me um erro, mas os erros recaem exclusivamente sobre o jogador, formulador da política financeira, que terá de conviver com as escolhas que fizer. Fica a mensagem, que talvez recobre sua perspectiva conforme se esvaírem os anos.

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O que não se pode é consumir esses recursos e impor à contabilidade que se comporte como se lá eles ainda estivessem. Voltar as costas para o passivo atuarial dos Regimes Próprios não o torna ausente e insubstancial como um fantasma, muito ao contrário, transforma-o verdadeiramente em fantasma. Enfim, ainda que se cogitem as desesperadas medidas, não é possível perder a torre prematuramente no jogo e fingir que ela está de volta.

*Alexandre Manir Figueiredo Sarquis, doutorando em Direito Financeiro USP, professor da FIPECAFI e conselheiro substituto do TCE-SP

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