Por mais polêmicos que possam ser, julgamentos contramajoritários como o do reconhecimento de uniões homoafetivas, da descriminalização do parto de fetos anencefálicos, da constitucionalidade das cotas raciais, do estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário - para citar alguns mais emblemáticos dos últimos anos - não se mostram uma simples reacomodação institucional do poder.
Pelo contrário, a circunstância sempre esquecida de que o Tribunal não age de ofício e, na verdade, é provocado a deliberar sobre essas matérias aponta para o despertar de uma consciência cívica - de que as promessas do texto dúctil da Constituição são exigíveis de cumprimento -, a indicar o enraizamento, mesmo que primitivo, do senso civilizatório de que democracia não é o regime da maioria, mas o dos direitos.
Na atual conjuntura de crise de diversas ordens - sanitária, moral, econômica e social -, a litigância política, enquanto gatilho necessário da jurisdição, cumpre um papel de interesse público ainda mais abrangente do que o relevantíssimo contencioso de direitos humanos que vinha se desenvolvendo em tempos de relativa normalidade, em que pese à tradição reacionária do imaginário de parte da magistratura possa qualificar essas iniciativas como "patrulhamento ideológico".
Não parece que o jogo democrático, no qual se insere a jurisdição constitucional, seja assim tão raso. Num contexto de explosão de demandas judiciais, a oportunidade de confeccionar ações que resultaram em decisões que deram os contornos da atuação do Estado nessa época de exceção - poderes de entes federativos adotar medidas sanitárias (ADI 6.341), interdição de posse de dirigente da Polícia Federal (MS 37.097), responsabilização de agentes públicos (ADI 6.428) e limitação das atribuições das Forças Armadas (ADI 6.457) - permitiu compreender, de um ponto de vista privilegiado, a vocação para a temperança do Supremo.
De um lado, o fervor dos acontecimentos da vida política turva a clareza dos limites que esse perfil institucional impõe ao Tribunal, como se eles não existissem; de outro, um olhar científico denuncia sua fragmentação decisória ("as onze ilhas") e uma consequente disfunção na densidade argumentativa de seus pronunciamentos. Todavia, nenhum desses fatores é que garante o acolhimento de certas pretensões com alto viés ideológico, em regra, suscitadas por partidos.
Não se cuida de aproveitar uma janela de discurso, e sim de assimilar o referido traço de sobriedade institucional encrustado nas práticas da Corte. Durante a ditadura militar, por exemplo, o Tribunal convivia com atos institucionais ao mesmo tempo em que, aplicando a Constituição, concedia habeas corpus contra os interesses da tirania. O sucesso da tarefa de advogados como Sobral Pinto e Arnoldo Wald não dependia das condições de fato de fora da gramática jurídica, mas das de dentro dela.
A sensibilidade para perceber uma dobra, uma fenda de atalho, no uso da linguagem relevante internamente para o Direito, tencionando as linhas de equilíbrio que são caras à cultura de comedimento do Tribunal, é o que determina a obtenção da intervenção judicial politicamente provocada, não a preferência de um juiz ou algum exercício de Realpolitik.
Como outrora, hoje o valor da advocacia política não está em instrumentalizar a jurisdição para uma cartilha partidária em particular, mas em criar - com a articulação da retórica constitucional, principalmente - as possibilidades para o Poder Judiciário, especialmente o Supremo, guardar nossos valores democráticos e republicanos mais fundamentais. Pela força dos direitos e não do momento.
*Lucas de Castro Rivas é advogado do Partido Democrático Trabalhista (PDT)