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O trabalho por meio de aplicativos e a prejudicial lógica do '8 ou 80'

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Por Rodrigo Takano e Murilo Germiniani
Atualização:
Rodrigo Takano e Murilo Germiniani. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A popularização de modelos de negócios baseados em plataformas de intermediação - aplicativos - que visam conectar usuários a prestadores de serviços tem gerado intenso debate no âmbito jurídico, tanto na esfera judicial quanto extrajudicial.

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Conforme pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva, 20% da população economicamente ativa no Brasil utiliza algum tipo de aplicativo para trabalhar. Hoje, isso representa 32,4 milhões de pessoas. Desse contingente, o levantamento indica que 28% utilizam aplicativos que intermedeiam serviços de transporte e 14%, aplicativos que intermedeiam serviços de entrega, para obter algum tipo de renda.

Aqueles que defendem que entregadores e motoristas deveriam ser considerados empregados das plataformas sustentam que a uberização das relações de trabalho é a nova forma de precarização de direitos trabalhistas e exploração de mão-de-obra.

Os que defendem a ausência de relação de emprego entendem que as plataformas são apenas uma nova forma de intermediação de serviços autônomos.

Atualmente, há diversos inquéritos do Ministério Público do Trabalho para investigar se há ou não vínculo de emprego entre prestadores de serviços e plataformas e centenas de ações trabalhistas discutindo o tema na Justiça do Trabalho.

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Na esfera judicial, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) já decidiu, pelo menos três vezes, que não há vínculo de emprego entre motoristas e a Uber. As decisões se baseiam, principalmente, na ausência de subordinação e na autonomia dos motoristas para a prestação dos serviços. Dois fatores incompatíveis com a relação de emprego.

Ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho em face de plataformas também tiveram resultados semelhantes quando analisadas pela Justiça do Trabalho.

Em janeiro de 2020, a 37ª Vara do Trabalho de São Paulo julgou improcedente a ação civil pública ajuizada em face do iFood requerendo a declaração de existência de vínculo de emprego entre todos os entregadores e o iFood. A juíza responsável pelo caso entendeu que os entregadores não são subordinados ao iFood. De acordo com a decisão, ficou demonstrado que o trabalhador se coloca à disposição para trabalhar no dia que escolher trabalhar, iniciando e terminando a jornada no momento que decidir, escolhendo a entrega que quer fazer e escolhendo para qual aplicativo vai fazer uma vez que pode se colocar à disposição, ao mesmo tempo, para quantos aplicativos desejar.

Recentemente, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, ao analisar a ação civil pública que havia sido ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho contra a Loggi, reformou a decisão que havia declarado que entregadores deveriam ser considerados empregados. Essa era a única decisão de primeira instância em ações coletivas que condenava a plataforma.

Para o Desembargador relator do caso, o principal fator que, em seu entendimento, afasta a existência de subordinação, é a possibilidade de recusa da prestação do serviço pelo entregador: o trabalhador labora nas oportunidades que melhor lhe convêm, onde lhe convém, podendo escolher as entregas que pretende efetuar, situação incogitável no âmbito de uma relação empregatícia clássica. De acordo com o relator, o aplicativo realiza a interface entre o trabalhador e quem precisa do serviço, funcionando como uma ferramenta neutra para fazer encontrar a oferta e a demanda.

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Hoje podemos dizer que a jurisprudência da Justiça do Trabalho majoritariamente - e caminhando para a pacificação - entende que os prestadores de serviços são autônomos, e não empregados das plataformas.

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Isso não significa, entretanto, que a Justiça do Trabalho resolveu o problema. No processo judicial, ao analisar o conflito que se apresenta, o juiz está restrito ao que chamamos de "limites da lide": ele não pode decidir sobre algo que não foi pedido.

Em razão disso, na Justiça do Trabalho, ações pleiteando o reconhecimento de vínculo de emprego entre trabalhadores e empresas, como ocorre nos casos entre entregadores/motoristas e plataformas, são analisadas pela lógica do 8 ou 80: ou o trabalhador é considerado empregado, ou o trabalhador é considerado autônomo.

Diferentemente do que ocorre em outros países nos quais a legislação prevê a existência de trabalhadores que não são considerados empregados, mas também não são puramente autônomos, a nossa legislação não contempla essa figura intermediária.

A Suprema Corte do Reino Unido, recentemente, enquadrou os motoristas da Uber na figura de "trabalhadores", e não como "empregados", assegurando aos motoristas direitos trabalhistas, como salário-mínimo e férias anuais remuneradas.

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Esse modelo, apesar de ser mais custoso para a plataforma, não inviabilizou o modelo de negócios da Uber no Reino Unido. Pelo contrário, recentemente, como noticiado pela mídia, a empresa declarou que iria cumprir a decisão judicial. A compatibilização do modelo de negócios da Uber com a figura intermediária do trabalhador não empregado assegurou um grau adicional de direitos trabalhistas aos motoristas e só foi possível porque a legislação britânica permitiu que a Suprema Corte atuasse dessa forma.

No Brasil, na ausência de meio termo, prevalece a judicialização.

Nesse ambiente de conflito, todos perdem. Perdem as plataformas, que não possuem um ambiente favorável ao desenvolvimento de seus negócios. Perdem os trabalhadores, que, na falta de uma melhor figura, são tratados como trabalhadores autônomos puros, sem qualquer proteção além da previdenciária (a qual, infelizmente, a maioria deles, muitas vezes, abre mão). Perde a sociedade. Perde o Brasil.

A judicialização e a lógica do 8 ou 80 não favorecem a geração de trabalho e renda.

A solução será construída apenas a partir do diálogo, do debate, da sociedade.

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O Mundo evoluiu e é necessário que a legislação trabalhista também evolua: o vínculo de emprego clássico moldado pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1947 já não é suficiente para promover o trabalho no século XXI. Não é o caso de acabar com a CLT. Modernizar não é sinônimo de precarizar. Modernizar é entender a realidade que os novos modelos de negócios impõem e as necessidades das novas relações de trabalho.

O Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Alexandre Luiz Ramos, ao julgar caso envolvendo um motorista que pleiteava ser empregado da Uber, foi preciso: as novas formas de trabalho devem ser reguladas por lei própria e, enquanto o legislador não a edita, não pode o julgador aplicar indiscriminadamente o padrão da relação de emprego.

Enquanto a legislação brasileira não se adaptar (com a criação de uma nova figura intermediária, por exemplo), continuaremos assistindo conflitos judiciais e ficaremos cada vez mais distantes de promover direitos fundamentais essenciais: a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, pilares da ordem econômica brasileira.

Até quando?

*Rodrigo Takano e Murilo Germiniani são, respectivamente, sócio e advogado do Machado Meyer Advogados

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