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O STF em defesa de quem?

Por Edilson Vitorelli
Atualização:
Edilson Vitorelli. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

A UIF, antigo Coaf, foi criada como uma unidade do Ministério da Justiça (hoje, no Bacen) para fazer uma coisa muito simples: receber dos bancos notificações de que alguém teria realizado uma transação suspeita, anormal. Assim, por exemplo, se você resolver que é mais seguro guardar R$ 50 milhões em casa, em vez de em um banco, você tem todo o direito de fazê-lo. Mas como esse é um comportamento atípico, o banco vai notificar o Coaf sobre isso. O Coaf vai compartilhar essa informação com a Receita Federal e o Ministério Público e, como esse é um comportamento atípico, você poderá ser investigado.

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É só isso. Se estiver tudo certo, se esse dinheiro tiver origem lícita e você for apenas alguém desconfiado do sistema bancário, pode dormir tranquilo. A investigação será arquivada. O Coaf não tem acesso aos seus extratos bancários, não sabe de nenhuma outra transação que você fez, salvo aquelas que se enquadram nos critérios suspeitos, que os bancos devem comunicar. Também é claro que não houve quebra do seu sigilo bancário. Apenas foi comunicada a ocorrência de uma transação suspeita. Para saber o restante do que consta do seu extrato, no seu telefone, nos seus e-mails, a autoridade que investiga vai precisar de ordem judicial.

Uma ala do Supremo Tribunal Federal parece pretender mudar isso. Ministros vêm dizendo, em entrevistas, que limitar esse compartilhamento de informação "é defesa do cidadão" e que "se o detalhamento é feito sem a participação do Judiciário, qualquer cidadão brasileiro está sujeito a um vasculhamento na sua intimidade". Quando se diz isso, parece que o Coaf vai devassar a vida da pessoa e coloca-la em um mural público, para quem quiser ver e que a única salvação para as pessoas honestas é que tudo passe pelo Poder Judiciário. Algo digno de um filme de terror.

Nem uma coisa nem outra são verdadeiras. Primeiro, não há devassa, não há "vasculhamento" das informações do contribuinte. Há apenas recepção e compartilhamento de informações relativas a operações objetivamente consideradas suspeitas. Não se escolhe quem fez a operação, não é algo subjetivo. Segundo, a informação é repassada apenas a autoridades, membros do Ministério Público e da Receita Federal. Estes, da mesma maneira que os juízes, fizeram concurso público, têm dever de manter a informação em sigilo, terão seus nomes registrados para que se saiba que acessaram os dados. Eles estão sujeitos a regimes disciplinares tão ou mais rigorosos que os dos juízes, caso façam mau uso da informação ou, mesmo que não a utilizem, caso acessem uma informação que não diz respeito a investigação sob sua responsabilidade.

Não parece justo, nesse contexto, querer colocar o cidadão de bem como beneficiário da tese que parte do STF vem defendendo. Suas informações continuam perfeitamente em sigilo, do jeito que a UIF atua hoje e o Coaf sempre atuou. Também não parece que o cidadão criminoso, que também tem direitos, possa ter uma expectativa legítima de que os dados das transações que realiza não sejam compartilhados de uma autoridade supervisora do sistema financeiro para uma autoridade investigadora de ilegalidades, com a manutenção, entre elas, do dever de sigilo.

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O funcionamento da UIF não viola os direitos de ninguém, honesto ou criminoso. O único efeito prático dessa decisão, se vier a ser tomada pelo STF, não será a proteção do cidadão. Será a criação de um obstáculo, burocrático e inútil, para as investigações dos crimes financeiros, que são aqueles praticados apenas pelos corruptos e criminosos ricos. O pobre, o hipervulnerável, continuará sendo preso, em um sistema cada vez mais iníquo e desigual. Esperemos que isso não aconteça.

*Edilson Vitorelli, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie Campinas; pós-doutor em Direito. É o único brasileiro vencedor do prêmio Mauro Cappelletti, concedido pela International Association of Procedural Law ao melhor livro sobre processo do mundo

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