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O STF e o julgamento da ADC 51: uma necessária análise dos instrumentos de cooperação jurídica internacional

Por Filipe Vergniano Magliarelli e Victor Campos Fanti
Atualização:
Filipe Vergniano Magliarelli e Victor Campos Fanti. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Pensemos em uma empresa sediada nos Estados Unidos da América que oferece serviços de e-mail a usuários espalhados em todos os continentes. Pensemos, ainda, que essa empresa estrangeira possui subsidiária no Brasil, constituída unicamente para fins de publicidade ou outros serviços que em nada têm relação com o serviço de e-mail, que é totalmente operado pela empresa estrangeira.

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Pois bem. Mesmo sem ter acesso ou posse de qualquer dado sigiloso referente aos usuários do serviço de e-mail, imagine-se que a subsidiária brasileira receba ordem judicial para o fornecimento do conteúdo disponível na conta de e-mail e de dados de localização do usuário. Diante da impossibilidade técnica e física de acesso e entrega dos dados solicitados pelo Poder Judiciário, é imposta multa diária em dezenas de milhares de reais a ser paga pela subsidiária brasileira, em razão do suposto "descumprimento" da ordem judicial.

Infelizmente, essa é uma situação que tem se tornado corriqueira. Subsidiárias brasileiras de grandes companhias estrangeiras se veem diante de um embate com os tribunais, justamente por não deterem os dados sigilosos de usuários de e-mails ou de redes sociais, os quais estão, em sua integralidade, armazenados em outro país. E isso não deveria representar problema algum, pois inexiste norma no Brasil que obrigue provedores de internet e e-mail de manterem os dados das contas em território nacional, conforme interpretação do Marco Civil da Internet.

A gravidade da questão tomou tamanha proporção que a Federação das Associações da Empresas de Tecnologia da Informação ajuizou Ação Declaratória de Constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (ADC 51), para que se discuta a constitucionalidade de se exigir o cumprimento de instrumentos de cooperação jurídica internacional para a obtenção de dados e conteúdo armazenados no exterior por empresa com operação no Brasil.

Não é de hoje que os tribunais brasileiros deixaram de aplicar os necessários ritos da carta rogatória ou do auxílio direto - instrumentos de cooperação jurídica internacional - para a obtenção de dados que estão sob o controle de empresas estabelecidas em outros países, mas que contam com subsidiária no Brasil. Ou seja, ao invés de se socorrerem aos instrumentos consagrados de cooperação jurídica internacional, o que despenderia certo tempo e custo, opta-se pelo caminho mais "cômodo" de pressionar a filial estrangeira pela entrega informal dos dados sigilosos. E, para tal propósito, mantém-se a filial brasileira como refém de ameaças de multas diárias altíssimas e, em casos mais extremados, de prisão de seus representantes legais.

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O que se verifica na prática é que os tribunais brasileiros entendem por desnecessária a utilização da cooperação jurídica internacional quando a empresa provedora de dados possui subsidiária operante em território nacional. Defende-se que a entrega dos dados à justiça deve se dar diretamente ao juiz requisitante, por meio da transferência informal de dados entre empresa estrangeira e sua subsidiária no Brasil. Nesse sentido, os tribunais pátrios argumentam que a não prestação das informações pela subsidiária brasileira configuraria afronta à soberania nacional e ao próprio Poder Judiciário.

O Superior Tribunal de Justiça, entendendo pela necessidade de respeitar a soberania nacional, já pacificou o entendimento de que é possível a imposição de multa coercitiva para a empresa subsidiária sediada no Brasil que não tenha fornecido os dados requisitados pela Justiça no prazo fixado. As multas impostas giram em torno de R$ 50 mil a R$ 100 mil por dia, não havendo limite de tempo para sua imposição.

Assim, o julgamento da ADC 51, que está pautado para ocorrer em 14 de abril de 2021, será de suma importância para dirimir a controvérsia entre empresas subsidiárias de provedoras estrangeiras de aplicações de internet e o Poder Judiciário Brasileiro. Assumindo a complexidade do tema, o STF deve finalmente decidir se a utilização dos instrumentos de cooperação jurídica internacional são meios imprescindíveis para obtenção de informações sigilosas armazenadas no exterior.

Entendemos que a resposta deva ser respondida de forma afirmativa pelo Supremo Tribunal Federal. Somente a empresa provedora de aplicação estrangeira, por ser a detentora dos dados requisitados, pode ser destinatária de ordem judicial brasileira de quebra de sigilo e disponibilização dos dados. Porém, como haveria nesse caso uma transferência internacional de provas, dado que os juízes brasileiros não têm atribuição fora do território nacional, precisam necessariamente pedir auxílio das autoridades do país onde se encontram as provas almejadas. Existem tratados internacionais firmados pelo Brasil com diversos países nos quais estão previstos os procedimentos que esses países reconhecem como legítimos para que haja essa mútua troca de informações e de provas.

Isso significa que as empresas provedoras sediadas no exterior não podem simplesmente encaminhar informalmente os dados solicitados às suas subsidiárias brasileiras, para que estas forneçam ao Judiciário no Brasil, pois a mera disponibilização de dados sigilosos em desacordo com a lei daquele país e à margem dos procedimentos oficiais de cooperação jurídica internacional pode tornar a conduta ilícita.

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Nos Estados Unidos, há leis que impõem severas limitações à possibilidade de provedores de internet disponibilizarem o conteúdo de comunicação privada de seus usuários a terceiros, incluindo entes estatais estrangeiros. Pode-se citar, como exemplo, o Stored Communications Act, que integra o título II do Electronic Communications Privacy Act, lei federal que autoriza somente entidades governamentais americanas a obrigar provedores de serviços a divulgar conteúdo de comunicações privadas, sob pena de incidência da empresa em graves penalidades, inclusive criminais.

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Na Europa, o General Data Protection Regulation dispõe que as decisões judiciais de um país terceiro que determinem o fornecimento de dados sigilosos de empresa sediada em algum dos seus Estados-Membros só serão reconhecidas se estiverem de acordo com o acordo de assistência mútua a que fazem parte, sob pena de aplicação de multa, à empresa detentora dos dados, de até 4 % do faturamento bruto a nível mundial correspondente ao último exercício financeiro.

Assim, se uma empresa provedora de dados estiver sob jurisdição de um outro país, como os EUA ou algum Estado-Membro da União Europeia, que proíbem o envio direto de dados às autoridades estrangeiras, não há outra saída senão recorrer aos instrumentos de cooperação jurídica internacional para a obtenção das informações almejadas.

A classe jurídica e as empresas de tecnologia aguardam ansiosamente pelo julgamento que ocorrerá em abril, confiando que a posição do STF ofereça, também, um estímulo ao aprimoramento dos instrumentos de cooperação jurídica internacional para efetivar o cumprimento de ordens judiciais com maior celeridade, sobretudo em casos que investigam crimes. Porém, a investigação e sanção de uma infração a lei nacional não justifica a obtenção de provas com violação à ordem jurídica internacional ou com uma tentativa à Tupiniquim de assegurar uma aparente supremacia da soberania brasileira em detrimento da supremacia de países com os quais mantemos relações diplomáticas.

*Filipe Vergniano Magliarelli, advogado criminalista, sócio das áreas de Penal Empresarial e Compliance do escritório KLA Advogados, mestre em Direito Processual Penal pela USP

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*Victor Campos Fanti, advogado criminalista, associado do escritório KLA Advogados na área de Direito Penal Empresarial, pós-graduando em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim

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