PUBLICIDADE

Foto do(a) blog

Notícias e artigos do mundo do Direito: a rotina da Polícia, Ministério Público e Tribunais

O STF, a liberdade de expressão e os ovos da serpente

Por Rodrigo Meyer Bornholdt
Atualização:
Rodrigo Meyer Bornholdt. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

É preciso separar o joio do trigo na cruzada que tem sido movida contra o Supremo Tribunal Federal (STF), afinal, se há nesta crise recente algo que pode e eventualmente até deva ser criticado quanto ao comportamento da corte, deve-se contestar tentativas de erodir um dos poderes que representam a garantia dos direitos fundamentais e da democracia.

PUBLICIDADE

Já de há tempos, o STF foi eleito como alvo de milícias digitais criadas por setores da extrema direita. Nesse contexto, a determinação de abertura de um inquérito pelo presidente da Suprema Corte, Dias Toffoli, foi correta. Isso porque o regimento interno do STF efetivamente garante sua qualidade de poder fundamental à soberania e, especificamente, de guardião da Constituição. Logo, quando há ataques ao funcionamento deste Poder -- e aqui não nos referimos a meras críticas -- tem-se no inquérito uma solução jurídica adequada. Por isso, juízos convencionais, do tipo "quem acusa, não julga; e quem julga, não acusa", tão difundidos recentemente, não alcançam o significado do inquérito e a tentativa de emasculação da autoridade de um poder constitutivo do Estado de Direito.

Obviamente, a legitimidade do inquérito não permite abusos de um ou outro ministro, que devem ser coibidos. A notícia sobre "o amigo do amigo do meu pai", divulgada numa revista e posteriormente censurada, estava longe de representar uma fake news. Mereceria até direito de resposta, mas nem por isso se podia proibir sua divulgação à opinião pública. Felizmente, aliás, prevaleceu a Constituição e a liminar foi revogada.

Aqui, faz-se necessária uma explicação quanto ao alcance e limites da liberdade de expressão. Na interpretação da Constituição, o Brasil deve se pautar por parâmetros mais assemelhados às ordens constitucionais europeias e menos próximos, portanto, ao direito norte-americano, em que há uma preferência quase absoluta à liberdade de expressão, fazendo-a sobressair inclusive sobre notícias sabidamente inverídicas (as fake news de hoje em dia) e calúnias grosseiras. Isso em respeito a outros direitos de personalidade igualmente consagrados no texto constitucional. Cabe acentuar, contudo, que também no parâmetro ora defendido a liberdade de expressão ocupa lugar de destaque muito maior do que já possuiu no direito brasileiro. Apenas agressões especialmente intensas (não cabe aqui detalhá-las) e fake news restarão fora da proteção conferida liberdade de expressão. Sensibilidades excessivas devem ceder em face do livre fluxo de informação e discussão.

Contudo, no "liberalismo ilimitado" que alguns defendem por aqui, a ordem democrática e social fica em risco. Cheguei a ver professores de direito comparando os xingamentos a ministros do Supremo com aqueles proferidos contra juízes de futebol. Ora, se é certo que esses mereceriam também alguma proteção, a comparação é risível. Outros apontam o status de figuras públicas dos ministros do STF, a fim de que eles se acostumem com uma esfera de proteção menor de sua honra e de sua intimidade. Isso é correto até certo ponto. Ministro do STF também é figura pública. Contudo, isso não significa que xingamentos, calúnias e vários tipos de difamação devam prevalecer sobre sua honra.

Publicidade

Mais grave ainda são as ameaças de fechamento do Supremo. Carl Schmitt -- um jurista brilhante, mas autoritário, que legitimou a ordem nazista na Alemanha -- já condenara a Constituição democrática de Weimar, de 1919. Por seu titubeio, a carta alemã permitiu o caos decorrente de sua indisposição liberal para confrontar seus próprios inimigos domésticos à extrema direita e à extrema esquerda. É por essas e outras que a Constituição alemã de 1949, visando a evitar uma nova tomada de poder por forças hostis à democracia, veda a organização de partidos políticos com fundo autoritário e a própria expressão e difusão de ideias neonazistas. Negar o Holocausto, por exemplo, é crime!

É certo que tanto aqui quanto na Europa ou nos Estados Unidos a liberdade de expressão deve ter, sim, preferência justamente quando é incômoda. Em especial, quando expressa dissidência, quando se afasta do lugar comum, fundamentalmente em questões políticas. Sua garantia não existe apenas para expressar conformidade com o status quo. Mas daí a permitir ações orquestradas ou incitações à derrubada de um dos poderes da República, é algo que atende apenas àqueles que têm pouco apreço pela democracia.

Por mais boa vontade e sentimento democrático que tenham, equivocam-se aqueles que defendem o descontrole e a inexistência de leis de defesa da ordem constitucional brasileira. Estados Democráticos de Direito necessitam de legislação adequada que garantam sua existência e coíbam ameaças. À falta de nova legislação, continua válida a Lei de Segurança Nacional, naquilo que compatível com a Constituição. Perceba-se: em outras épocas democráticas, tivemos já leis semelhantes, assim com a Lei 1802/53, do período democrático da Constituição de 1946. Só para lembrar, atualmente é crime, no Brasil, a propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem vigente e, também, a incitação à animosidade entre as Forças Armadas e as instituições.

Não nos enganemos! Dos ovos da serpente já foram chocadas algumas víboras. Não deixemos, baseados numa ingenuidade democrata, que elas cresçam e devorem o que veem pela frente!

*Rodrigo Meyer Bornholdt é advogado e doutor em Direito pela UFPR. É autor do livro Liberdade de expressão e direito à honra: uma nova abordagem no direito brasileiro (Ed. Bildung: 2010)

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.