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O sarcasmo que camufla a cólera

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Por Carla Fiamini
Atualização:
Carla Fiamini. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

No sábado (13 de abril), fez exatos 30 dias que dois jovens, um de 17 anos e outro de 24, marcaram com sangue e indelével tristeza a história de Suzano, município da região metropolitana do Estado de São Paulo. Há um mês, os dois ex-alunos da Escola Estadual (E.E.) 'Professor Raul Brasil' descarregaram suas armas, além do ódio e da revolta que sentiam pelo o que aquele ambiente para eles representava, sem dó, nem piedade, sem sequer um resquício de arrependimento, sem perguntarem nada, sem alvo-certo, sem volta.

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A cidade que um dia já foi 'das flores' e do 'futuro de glória', como pontua o Hino a Suzano, se viu, de repente, em meio a um caos sem precedentes, sem resposta. Porém, ao mesmo tempo em que parecia não ter motivação, o massacre se perdeu num sem-número de possíveis incentivos aos garotos de corpo franzino para armarem suas almas com vingança e uma quase certeza do que simbolizava a eles a solidão de serem preteridos, debochados, desacreditados!

Antes marginalizada, em 13 de março de 2019, a dupla se tornou protagonista de uma tragédia permeada por requintes de crueldade e de abstrusa compreensão. Os garotos foram, enfim, vistos, notados e vingados.

Poucos dias após o massacre, enquanto ainda se contabilizavam os dez corpos no velório e nos sepultamentos, estipulava-se o retorno à rotina dos sobreviventes e de toda uma comunidade escolar extremamente abalada e traumatizada - uma retomada embalada por clima fúnebre, pesar, insegurança e medo. Um misto de lamentação e de inquietação pelo passado tão recente e massacrante e da ansiedade pelo o que seria enfrentado daquele momento em diante.

A mente de estudantes e de professores que escaparam por um triz da morte virou morada de uma espécie de looping - era a sensação da reconstituição dos assassinatos, a tal gramática do crime. Afinal, o que mais poderia passar pelos portões da escola invadida pela intolerância naquela manhã? Não havia garantias - e reparou-se que nunca houve.

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Mesmo após as pás de terra cobrirem o caixão da última vítima a ser enterrada, os olhos midiáticos do mundo ainda se voltavam à Suzano na qualidade de palco de uma chacina, com direito a amplo interesse pelos desdobramentos criminais. Enquanto isso, na cena do crime, alunos e educadores sobreviventes abriam novamente seus cadernos patrocinados por um afã de 'a vida continua'. Assim, deram início a um complexo reinício coletivo e, ao mesmo tempo, solitário.

A cada dia em que os portões da 'Raul Brasil' se fechavam para cumprir o ano letivo, ficava mais nítida a individualização de condutas.

De um lado, uma sociedade mobilizada mais a lamentar do que evitar situações semelhantes, e mais disposta a segurar as alças dos caixões do que a mão de quem respirava sem saber ao certo onde encontrava forças para encher os pulmões após a tal 'Quarta-Feira 13'.

Concomitantemente, discursos de quem se esperava providências e consideração presenteavam o mundo com a ciência da auto absolvição, ao defenderem a barbárie como imprevisível.

De fato, ninguém profetizou que dois garotos fissurados em onipotência (o poder de matar e de se matar), em games onde o herói é o bandido, e em postagens reacionárias, sendo, ainda, colecionadores de variadas desordens psicológicas e sociais, pudessem chegar ao ponto de abrirem fogo contra seus semelhantes dentro de uma escola estadual.

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Justamente por ninguém, até agora, ter essa competência, é que pais, mães, alunos e funcionários da 'Raul Brasil' passaram a cobrar mais coragem republicana e cívica de quem de direito, a fim de que a retomada à vida educacional não se tornasse um conluio perverso.

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Não havia, afinal, mais normalidade. Não havia mais 'igual ao que era antes', porque o 'antes' foi executado a tiros e a machadadas em 13 de março.

Para quem ficou e teve de voltar à escola, a dor nunca foi, um dia sequer, suportável, neste último mês. Aliás, adultos e crianças, em poucos dias, perceberam mais: que a dor não sairia com sabão, como o sangue que foi derramado no chão; nem as lembranças se apagariam apenas se fazendo de conta que não existiam.

Para combaterem o medo do passado, os sobreviventes passaram a exigir mais segurança, e não demoraria para que dessem conta que a incerteza do futuro requereria apoio psicossocial amplo e constante, para que os desmaios, os vômitos e outros tipos de mal-estar registrados dentro e fora da escola fossem substituídos por razoáveis tranquilidade, força e confiança.

Mas, foi como água minando as estruturas. Tudo sem muita pressa - como se os dez sepultamentos e toda a trama que envolveu o ataque não tivessem a capacidade de tocar, de sensibilizar. Observou-se, então, que a dor mais suportável é a dor do outro, e que a voz mais ouvida é a de quem já morreu.

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Fui aluna da 'Raul Brasil' por oito anos. Esta escola pública me preparou para o mundo, incluindo a capacidade de me sentir desconfortável ao testemunhar nestes últimos 30 dias mães e pais tendo de manifestar para terem acesso à instituição de ensino, que se tornou, talvez impactada pela chacina, num substrato maçônico.

Na 'Raul Brasil', ainda aprendi a não me conformar, a questionar, e sem a necessidade da certeza, pois lá nos bancos escolares hoje carimbados pelo ataque, me ensinaram que são nas ideias conflitantes que se concebem as soluções e os antídotos, ao mesmo tempo em que se combate à alienação e à ignoratização como projeto de controle, de manipulação e de poder.

A batalha diária na busca por uma normalidade só normal para quem não pode ser tão normal assim face a massacres foi também marcada por alunos merendando dentro dos banheiros - pois ali se sentiam mais seguros, caso um novo 'imprevisto' acontecesse. Outros, durante o recreio, passaram a traçar estratégias de fuga.

Enquanto mães e pais, alunos e comunidade escolar em pânico - muitos, inclusive, sob o efeito de medicamentos controlados - empunhavam a bandeira de melhorias em segurança e de maior acolhimento psicossocial nas escolas, numa fria concertação, no dia em que a chacina completou um mês, o esperado silêncio e as orações, as caminhadas, os protestos e os atos ecumênicos concederam espaço para uma festa em Suzano.

Um evento foi organizado no mesmo lugar onde se velou a maior parte dos corpos das vítimas da 'Raul Brasil'. Os idealizadores defenderam a iniciativa institucional como 'celebração da paz', apesar de o encontro abarcar shows, comércio de artesanato e de comidinhas, pintura facial e brinquedos infláveis. Detalhe: tudo orquestrado sem acordo algum com quem estava e ainda está em sofrimento.

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Lives com um público formado em sua maioria por pessoas totalmente divorciadas da tragédia invadiram as redes - nas cenas, imperou uma espécie de diversão às custas das lágrimas e da inconformidade de muitas famílias de quem estuda na 'Raul Brasil', bem como de educandos e de professores sobreviventes e ainda traumatizados.

Realização que não cabe defender ou não. Não cabe tutelar condutas. Cabe, por outro lado, questionar se era momento para tal e se há no ar um rastro de desprezo pela dor do outro...

Há uma longa caminhada pela frente. Foi só o primeiro mês. Muito está por vir, até mesmo cizânias. Porque, não importa quanto o tempo passe: quem perdeu para sempre alguém naquele dia, ou quem sobreviveu, mas perdeu a paz para sempre naquela tragédia, não tem condições de, hoje, vestir 'o branco da paz', pois não existe paz com medo! Nem dá para se usar 'branco da paz' quando ainda se veste o preto do luto!

Lembrar é reagir!

Esquecer e se calar é permitir!

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Que não seja em vão cada morte, e que não seja em vão cada um dos que não querem morrer aos poucos frente a uma sobrevivência pouco midiática e interessante aos olhos de quem, com método instrumentalizado, finge que não vê!

*Carla Fiamini é graduada em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo, pós-graduada em Docência no Ensino Superior, pós-graduanda em Neurociência e Comportamento, especialista em Assessoria de Imprensa, com ênfase em Órgãos Públicos e Mandatos, Gerenciamento de Crise e Média Training, escritora e palestrante

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