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O regime de nulidades contratuais presente na nova Lei de Licitações e Contratos

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Por André Peron Pereira Curiati
Atualização:
André Peron Pereira Curiati. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

Com a recente edição da Lei nº 14.133/2021, a velha Lei nº 8.666/93 finalmente se vai e, com ela, diversas previsões anacrônicas. O regime das nulidades dos contratos é uma delas.

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Descrição do novo regime -Por meio de uma visão clássica de que atos nulos não produzem efeitos, os artigos 49, §2º, e 59, da Lei nº 8.666/93, dispõem que, constatada ilegalidade no procedimento licitatório, o contrato deve ser anulado, devendo ser desconstituídos todos os efeitos já produzidos, assim como impedida a produção de novos. Em qualquer caso, o contratado deve ser indenizado, salvo se responsável pelo vício.

Trata-se, assim, de regime que eleva a legalidade como princípio basilar do Direito Administrativo, desconsiderando outros aspectos relevantes, tais como a boa-fé do contratado, a segurança jurídica e a confiança legítima. Ou seja, existe um nexo de causalidade: constatada a ilegalidade, o contrato deve ser declarado inválido.

A nova lei altera o regime de nulidades contratuais radicalmente. Adotando uma perspectiva realista e pouco romantizada, a Lei 14.133/2021, em seus artigos 147 a 150, estipula que, constatada ilegalidade não passível de saneamento no procedimento licitatório ou na execução contratual, apenas ocorrerá a declaração de nulidade do contrato caso essa seja a melhor medida para o interesse público.

E, no caso da nova lei, "interesse público" possui contornos significativamente objetivos: a nulidade será a medida adotada se, num exame de proporcionalidade entre a gravidade do vício encontrado e as consequências sociais, jurídicas e econômicas[1] dessa decisão, o vício possuir maior relevância. Caso as consequências da declaração de nulidade sejam mais gravosas que o vício encontrado, então o administrador deve manter o contrato.

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Assim, percebe-se que a lei abre margem para que atos inquestionavelmente ilegais continuem a produzir efeitos. Inclusive, pela redação dos incisos IV, V, VI, VIII, IX, X e XI, do artigo 147, parece ser possível afirmar que, caso o procedimento esteja avançado a ponto de o contrato já estar produzindo parcela significativa de efeitos, torna-se muito dificultoso que a medida que melhor atenda ao interesse público seja efetivamente a de anulação contratual, eis que decisão dessa natureza poderia culminar em perda dos serviços e obras já executados, bem como na necessidade de nova licitação e contratação.

A Lei nº 14.133/2021, contudo, não exige que, caso o gestor entenda pela anulação contratual, esta ocorra, necessariamente, desde logo e com efeitos retroativos, tal como sua antecessora. Em verdade, seu artigo 148, além dessa possibilidade, abre margem para mais dois caminhos diversos.

O primeiro (§1º): caso, por razões pragmáticas, não seja possível retornar à situação anterior, com a desconstituição de todos os efeitos já produzidos pelo contrato, é possível que a anulação seja apenas para o futuro, mantendo-se todos os efeitos já produzidos.

O segundo (§2º): visando a continuidade do serviço até então prestado, a lei permite, também, a adoção de espécie de regime de transição, no sentido de que, declarada a nulidade do contrato, esta só produza efeitos em momento futuro.

Em resumo, a lei permite: (i) a manutenção do contrato, caso as consequências da anulação sejam mais gravosas que o vício encontrado; e (ii) a anulação do contrato, (a) com efeitos retroativos e futuros; (b) apenas com efeitos futuros; e (c) com eficácia posterior à declaração de invalidade.

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No caso de manutenção, a irregularidade deve ser solucionada mediante indenização por perdas e danos (artigo 147, parágrafo único), assim como quando o contrato for anulado, situação em que o contratado será indenizado pela parcela que executou, salvo se tiver sido ele o responsável pelo vício (artigo 149).

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A nova lei inova?

Mas a questão que fica é: trata-se de efetiva inovação trazida pela Lei nº 14.133/2021? Entendo que não.

Apenas sob uma perspectiva legiferante, já se encontrava em nosso ordenamento jurídico previsões que, tal como a nova lei de licitações, privilegiam a segurança jurídica e a eficiência administrativa em detrimento da pura legalidade, a exemplo da possibilidade de convalidação de atos administrativos viciados (artigo 55, da Lei nº 9.784/99) e da modulação de efeitos, nos casos de decisões de controle concentrado proferidas pelo Supremo Tribunal Federal - STF (artigo 27, da Lei nº 9.868/99).

Mais recentemente, destaca-se a inclusão de novos dispositivos de direito público na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB. Seus artigos 21 e 23 exigem que, nas invalidações de ajustes e contratos, sejam consideradas as consequências jurídicas e administrativas da decisão, bem como estabelecem a figura do regime de transição, mesmo que em situações diversas daquela prevista pela nova lei de licitações.

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Ou seja: não há uma inovação, mas apenas a positivação especificamente para as licitações e contratos administrativos de algo que já existia. Por essa razão, talvez o mais relevante da nova lei seja a atribuição de maior conforto decisório aos gestores. É que, não obstante a existência dos dispositivos legais mencionados, especialmente aqueles dispostos na LINDB, a redação expressa da Lei nº 8.666/93 incomodava.

Se antes poderia haver alguma discussão sobre, por exemplo, manter um contrato viciado em razão das consequências práticas maléficas ou da insegurança jurídica produzida com sua invalidação, hoje parece ser algo mais pacífico.

E a Súmula nº 473, do STF?

Outra questão que a nova lei pode suscitar é sobre a subsistência da primeira parte da Súmula nº 473, do STF, segundo a qual "a administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos".

Conforme visto acima, nem a Lei nº 14.133/2021, nem o regime jurídico que já existia antes de sua edição, especialmente o artigo 21, da LINDB, admitem a solução simplista e pouco realista de causa e efeito, no sentido de que, identificado o vício, o contrato deve ser necessariamente anulado, desconstituindo-se todos os efeitos já produzidos.

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Por essa razão, entendo que, antes mesmo da edição da nova lei de licitações, a Súmula nº 473, do STF, ao menos sob uma perspectiva legiferante, já não fazia mais sentido prático. Ao exigir que consequências práticas sejam avaliadas na decisão de invalidação, ou não, do contrato ou ajuste, o artigo 21, da LINDB, já havia constatado que a legalidade administrativa, pura e soberana, tinha que dar espaço a valores outros, tais como a segurança jurídica e a eficiência administrativa.

Assim, pode-se dizer que o regime de nulidades dos contratos administrativos, trazido pela nova lei de licitações e contratos, apenas "terminou" o serviço iniciado pela LINDB: na síntese de Egon Bockmann Moreira, "está na hora de dizer adeus, com todas as honras e glórias, à Súmula 473". [2]

*André Peron Pereira Curiati, advogado da Porto Lauand Advogados, graduado pela PUC/SP e pós-graduando em Direito Administrativo pela FGV/SP-LAW

[1] O artigo 147, da Lei nº 14.133/2021, estabelece diversas "consequências" a serem ponderadas pelo gestor antes de tomar sua decisão. Aqui foram resumidas todas elas em "jurídicas, sociais e econômicas", apenas para fins de simplificação.

[2] Súmula 473: é hora de dizer adeus, Jota, 01 de out. 2019. Disponível em: . Acesso em: 24 maio 2021.

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