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O reconhecimento dos suspeitos à luz dos mais recentes debates e o Projeto de Lei nº 676/21

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Por Raul Abramo Ariano
Atualização:
Raul Abramo Ariano. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O reconhecimento criminal de um suspeito por testemunha é tema central nos debates jurídicos. Não haveria de ser diferente: esse tipo de prova é, não raras vezes, a única disponível em uma investigação, seja por efetiva impossibilidade de obtenção de prova diversa, seja por desinteresse de se prosseguir com a reconstrução dos fatos por parte dos investigadores. No entanto, a atual previsão legal do procedimento do reconhecimento é insuficiente para se garantir um mínimo de confiabilidade à prática (art. 226, Código de Processo Penal). Toma ainda maior importância o debate quando se observa que, na norma, a expressão "se possível" precede a descrição dos ritos de reconhecimento, literalidade que é compreendida em muitas decisões judiciais como uma mera sugestão do legislador, não acarretando em qualquer irregularidade processual a sua inobservância.

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Nesse contexto, o Projeto de Lei nº 676/21 busca trazer tratamento mais rigoroso a esse tão sensível meio de prova, inovando quanto à exigência de prévia descrição das feições daquele que se almeja reconhecer pelo reconhecedor, vedando expressamente o uso de perguntas indutivas; preceituando a exposição de especificações acerca do contexto em o suspeito teria sido observado, dentre outros pontos. Também, colocou-se uma pedra sobre qualquer discussão atinente à obrigatoriedade ou não do respeito aos procedimentos estipulados, trazendo a lei a natureza de mandamento obrigatório ao rito. Em certa medida, esse último ponto converge com a recente virada jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, que passou a afastar a suposta natureza de recomendação do art. 226, CPP [1].

A exigência de um maior rigor legal ao tema é de simples compreensão: os chamados "falsos positivos" estão entre as principais causas de erros judiciais no Brasil e, não raro, esse ato realizado em sede policial é suficiente para a decretação de medidas cautelares, como nos casos recentemente publicizados de L.C.C.J. e de B.Q.O., presos em situações distintas por terem sido reconhecidos mediante fotografias por crimes que não cometeram. Pior: muitas vezes o falso positivo é a única prova de todo o processo, culminando em atroz condenação errônea.

Conforme busca contornar, em parte, o projeto de lei, muitos são os motivos que desaguam em um falso reconhecimento: o estresse da vítima inerente daqueles que sofrem um crime; a presença de arma como elemento que capta a atenção ao artefato e não ao sujeito; a grande velocidade da realização do delito; a pluralidade de sujeitos; as condições de iluminação, o uso de acessórios pelo criminoso (como capacetes e óculos), deficiências visuais da vítima e exigência do criminoso de que não olhe diretamente ao seu rosto, estão entre alguns dos exemplos que tornam tão falível esse meio de prova. Além disso, não se pode deixar de ignorar o fenômeno que a psicologia comportamental nomeia de "efeito da raça diferente" ou "déficit de reconhecimento entre raças", ou seja, uma comprovada dificuldade da identificação de pessoas de etnias diversas.

Indo adiante, outro ponto que mitiga a precisa identificação do indivíduo se apresenta nos reconhecimentos consecutivos. Isso, pois quando determinada testemunha realiza uma inicial identificação de suspeito em sede policial, o posterior reconhecimento perante um juiz é muito mais um ato de "reconhecer o reconhecimento" do que de um reconhecimento originário. Se diz, pois, que existe uma intrínseca correlação entre a quantidade de oportunidades que uma pessoa deve proceder ao reconhecimento e o progressivo aumento da falibilidade do ato. É justamente outro fenômeno que a psicologia explica: o princípio da coerência. Em outros termos: uma pessoa que já fez o reconhecimento de um suspeito possui um natural (e involuntário) esforço cognitivo interno para manter aquela constatação externada, ainda que racionalmente assim não compreenda o sujeito.

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Por ótica diversa, como se sabe, é prática comum das delegacias de polícia a manutenção de "catálogo" de fotografias de diversos indivíduos que, por sua vez, é apresentado para as vítimas e, então, solicita-se que elas apontem qual daqueles indivíduos foi o perpetrador do crime. Além de desencontrada de qualquer previsão legal e ser metodologia submetida à arbitrariedade daquele que irá compor o álbum, o procedimento é censurável por diversos motivos. Para citar apenas dois: há violação ao princípio constitucional da não autoincriminação, se a foto lá posta não observou o consentimento do retratado; bem como não é incomum haver uma alta sugestionabilidade daquele que é posto para o reconhecimento por parte dos reforços positivos ou negativos operados pelos policiais que realizam o ato.

Não sem motivos, portanto, que em recente decisão do Estado do Rio de Janeiro, o magistrado consignou que a permanência da foto de um indivíduo nesses álbuns representaria verdadeira "roleta russa", uma vez que ele fatalmente acabará sendo reconhecido por, muito provavelmente, um crime que não cometeu. Ou, nas palavras do juiz Alberto Fraga: "E nesse tipo de brincadeira, em algum momento o desfecho é trágico". Com base nessa compreensão, o magistrado determinou a imediata supressão da foto do indivíduo desse copilado de fotografias, em incensurável decisão [2].

O que se percebe é que existe um imensurável potencial de que o reconhecimento de um suspeito acarrete um falso positivo, ainda mais quando o sistema é desacompanhado de balizas legais mínimas que buscam obstar esse hediondo erro. Não obstante, mesmo que tomadas todas as cautelas que as mais atualizadas discussões sobre o tema sugerem, ainda assim o reconhecimento possui em seu cerne uma indissociável aptidão de suceder em erro. Exatamente por isso é tão relevante que exista uma corroboração independente dessa prova, ou seja, de que existam outros elementos que permitam a ilação de que o indivíduo reconhecido foi, de fato, o autor do crime investigado. E também assim vem caminhando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, ao estabelecer essa regra especial para o tratamento dessa prova [3].

Esses dois últimos pontos, quais sejam: a problemática e arbitrária utilização de catálogos de suspeitos e a necessidade de corroboração desse meio de prova para se condenar também encontraram guarida no referido Projeto de Lei 676/21, o que demonstra uma preocupação em se delimitar um procedimento menos falível do que aquele atualmente em vigência.

Conclui-se que não se imagina que o Projeto de Lei possua a capacidade de dirimir todas as problemáticas envolvendo o reconhecimento de um suspeito, todavia, compreende-se que ele está em consonância com as mais atualizadas discussões sobre o rigor necessário dispendido a esse meio de prova e, assim, pode representar relevante passo rumo à diminuição das inaceitáveis condenações falhas.

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NOTAS:

[1] Vide os habeas corpus nos 598.886 e HC 335.956.

[2] Processo nº 0006376-54.2021.8.19.0036.

[3] Vide no STJ os habeas corpus nos 619.327; 598.886 e 462.030; no STF, os habeas corpus nos 172.606; 157.007 e recurso em habeas corpus nº 206.846, pelo voto do ministro Gilmar Mendes.

*Raul Abramo Ariano, advogado, especialista em direito penal do escritório Vilela, Miranda e Aguiar Fernandes Advogados

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