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O que precisamos saber sobre o PL do Gás

Por Paula Fernandes da Rocha Campos Amaral
Atualização:
Paula Fernandes da Rocha Campos Amaral. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

PL 4.476/2020 (conhecido como PL do Gás) é oriundo de uma política do Governo Federal, denominada "Novo Mercado do Gás", conduzida pelo Ministério das Minas e Energia e com participação de outros órgãos federais (CADE, ANP e EPE, entre outros). Os governos estaduais e suas agências reguladoras foram alijados do debate, de forma que seus interesses não foram levados em consideração na formulação deste Projeto de Lei.

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Inicialmente, quem perde com este projeto são os Estados da Federação. Isto porque, há 33 anos, os representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Constituinte, ao aprovarem a Constituição Federal de 1988, garantiram aos Estados uma das raras competências privativas, a de regular os "serviços locais de gás canalizado". As constituições estaduais replicaram a norma em seus textos. Os próprios legisladores infraconstitucionais sempre respeitaram tais competências, resguardando o §2º do artigo 25 da Constituição Federal em todos os artigos de lei que tratam do gás natural. 

Além disso, perde o Brasil. A competência deferida pela CFRB/88 para os serviços locais de gás canalizado (distribuição e comercialização) já está reconhecida tanto pelo CADE (08012.004550.99.11) quanto pelo STF (Reclamação 4210/SP). Tal distribuição de competências é dada em razão do reconhecimento da possibilidade de os Estados atuarem de forma mais assertiva, a fim de resguardar a segurança técnica das instalações, bem como do meio ambiente, e, ainda, em razão da segurança do abastecimento de seus clientes. Assim, a exclusão dos Estados no debate que fundamentou o PL 4.476/2020 gera, logo de início, um vício de iniciativa.

Ademais, houve ainda outras afrontas constitucionais, pois artigos do referido PL invadem tais competências, regulando matérias que pertencem aos serviços locais de gás canalizado. Portanto, o Brasil perde com a ofensa à segurança jurídica e, em especial, ao Pacto Federativo, cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988.

Também perde o cidadão brasileiro, dado que não há garantias de novos investimentos, tampouco de aumento substancial no número de empregos. Isto porque, além da imensa crise fiscal que se avizinha em razão da pandemia de Covid-19, também a construção de gasodutos de transporte que poderiam levar o gás natural ao interior do país não foi aprovada no Senado Federal. Ou seja, as grandes obras de escoamento do gás para o interior, que trariam enormes investimentos e empregos, não estão incluídas neste PL.

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Porém, o que ninguém fala é que a construção das térmicas no litoral brasileiro já pode ser realizada, independentemente da aprovação do presente Projeto de Lei. Até mesmo a ampliação dos gasodutos de transporte pode ser realizada, independentemente do PL, conforme Chamadas Públicas de Ampliação da TBG e da NTS, mas não estão ocorrendo por outros fundamentos. E não há novas rotas de escoamento de gás em construção a partir do Pré Sal, dado que não dependem do PL e não aconteceriam por conta dele.

Outro perdedor nesta história é o consumidor, pois ninguém consegue explicar de que maneira o preço da molécula de gás vai desabar imediatamente após a aprovação do Projeto de Lei. A retórica do Governo Federal é de que novos fornecedores entrarão no mercado de gás, como se isso já não fosse possível. Ocorre que os fornecedores não entravam no Brasil porque os preços praticados pela Petrobras eram subsidiados (muito baixos). Agora, com a nova política de preços da Petrobras, não há qualquer perspectiva de queda nos preços, porque estes são cotados no mercado internacional. Os tais novos fornecedores já vieram, mas aos mesmos preços de hoje.

O consumidor também não se beneficiará de redução dos preços do gás advindo do Pré Sal. A retórica de que o gás do Pré Sal irá reverter este quadro é só isso mesmo, retórica. O Pré Sal já produz muito mais do que consumimos diariamente, e os preços não caíram. Nas palavras da própria PPSA, empresa que representa os interesses do Governo Federal no Pré Sal, não há possibilidades de reverter a reinjeção de gás no curto e médio prazo. Ou seja, não há como o gás do Pré Sal ser utilizado para redução dos valores da molécula de gás, dado que ele é fundamental tecnicamente, e economicamente mais atraente, para se produzir mais óleo.

Pior do que isso, o Projeto de Lei ocasiona um enorme prejuízo ao consumidor local, especialmente aquele de pequeno porte. Isto se deve à permissão de saída dos grandes consumidores da esfera de regulação estadual, em razão da autorização velada para que haja a transformação das transportadoras em verdadeiras distribuidoras federais (bypass no legislador estadual), que levará a um substancial aumento de preços do gás repartido pelas distribuidoras estaduais, pois estas serão remuneradas apenas pelos pequenos clientes.

Então, quem ganha? 

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O Governo Federal é quem está conduzindo este processo de retirada das competências dos Estados, com o notório enfraquecimento dos governadores e legisladores estaduais. A coordenação do Novo Mercado do Gás pelo MME demonstra isso de forma clara. Não houve participação dos Estados no debate que envolve as suas próprias competências. Notadamente, como em tudo o que é feito no Brasil, também ganham alguns grandes consumidores de gás natural, algumas grandes indústrias.

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Dessa forma, o PL do Gás contribui para a manutenção da desigualdade social e regional do País, afastando o energético das residências e dos comércios. Para estes usuários, existirá apenas a alternativa das altas tarifas de energia elétrica ou o regresso ao botijão, a preços substancialmente mais altos do que o gás canalizado, uma vez que desde 2002, conforme informa a Petrobras, as importações de GLP (botijão) foram liberadas e os preços são definidos pelo mercado internacional, sofrendo inclusive reajuste em razão de variações do dólar.

Assim, os mencionados benefícios serão absorvidos por uma parcela mínima da sociedade brasileira ao custo da distribuição local de gás canalizado dado que, sem a possibilidade de atender os grandes usuários, verdadeiras âncoras dos sistemas estaduais, as concessionárias precisarão repassar seus custos aos pequenos usuários residenciais e comerciais, que não terão os recursos necessários para custeá-los. Ao fim e ao cabo, a aprovação do PL com a redação original, sem as modificações introduzidas pelo Senado Federal, possibilita até mesmo considerar o risco de minguarem as atividades das distribuidoras estaduais, viabilizando a esdrúxula transformação das transportadoras em distribuidoras federais.

A Arsesp (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo) almeja que os pontos abordados neste artigo sejam considerados pelos legisladores, de forma que o Projeto de Lei do Gás seja aprovado com uma redação que realmente fomente, com estabilidade e segurança, o desenvolvimento amplo do uso do energético em todo o território nacional, respeitadas as competências constitucionais privativas dos Estados, para que sejam parceiros ideais nesta empreitada.

*Paula Fernandes da Rocha Campos Amaral, engenheira eletricista, é diretora-presidente e diretora de Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços de Gás Canalizado da ARSESP (Agência Reguladoras de Serviços Públicos do Estado de SP), vice presidente para a região Sudeste e coordenadora da Câmara Técnica de Petróleo e Gás da ABAR (Associação Brasileira de Agências de Regulação)

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