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O que o caso Magalu tem a ver com a liberdade de expressão

Por André Marsiglia Santos
Atualização:

A loja de varejo Magalu lançou nos últimos dias um programa de trainee apenas para negros. A polêmica imediatamente se fez. Uns dizendo se tratar de racismo reverso, e apontando que a Constituição veda a discriminação.

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Outros defendendo que racismo pressupõe opressão, e, portanto, não seria possível existir racismo reverso, cristofobia, etc., lembrando ainda que a restrição a negros sempre existiu, mas de forma velada, sendo a pretensão da empresa medida escorada na defesa da igualdade constitucional.

Dworkin nos dá uma saída para a questão, mostrando que as constituições contemporâneas dispõem seus direitos de forma ampla e abstrata, tornando inevitável a leitura moral de boa parte dos seus dispositivos.

Não existe, assim, a possibilidade de uma leitura neutra do que venham a ser vedar a discriminação ou promover a igualdade. A interpretação da Constituição pode levar, como tem feito, ao entendimento de que tais valores estariam bem empregados em políticas públicas e ações afirmativas destinadas a grupos mais vulneráveis.

Essa leitura moral, continua Dworkin, nos é de estranho sabor apenas se acreditarmos no mito de que a democracia é o governo da maioria, sendo, nesse caso, censurável os demais se curvarem aos excluídos. O clássico e democrático direito à liberdade de expressão, no entanto, é um bom exemplo de que essa visão está errada - a referida liberdade nada mais é do que um direito contra a maioria, um dever de não interferência imposto ao representante dela, o Estado.

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Ademais, ações afirmativas como essas já estão para lá de pacificadas na atualidade. Ninguém estranharia um concurso reservar 1% das suas vagas para negros. Ora, reservar 1% ou 100%, aos críticos de tais políticas, deveria igualmente ser medida discriminatória. O conceito de discriminação não depende de percentual, mas do princípio diferenciador.

Pois bem, à questão sobre se a loja Magalu tem o direito de fazer sua promoção, a resposta me parece inevitavelmente ter de ser sim, e não vejo, a essa altura, senão como estéreis, as discussões sobre a licitude do ato. A questão que mais me interessa, no entanto, é se a varejista tem esse direito respaldada na defesa da igualdade constitucional. E, nesse caso, minha resposta é não!

O direito a tal promoção é, a meu ver, baseado na liberdade de expressão comercial. Não se tratando de um ilícito, a empresa sempre terá o direito constitucional de se colocar diante de seus funcionários, público consumidor, e  sociedade da forma que bem entender, manifestando-se e agindo livremente  como melhor lhe convier, em defesa dos valores que entender por bem defender.

Mas não é por isso que promoverá a igualdade. Tal promoção pressupõe a capacidade de escolher o grupo menos favorecido possível como beneficiário, e uma empresa privada não está apta a fazer essa escolha.

Autores como Owen Fiss lembram que muitos grupos excluídos sequer são visíveis ao público, razão pela qual a promoção da igualdade é afeita ao âmbito da escolha política, seja em razão da legitimação representativa do Estado, seja em razão de seu desinteresse comercial.

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Claro que não ignoro a nossa conhecida ineficiência estatal, porém, quando se trata de princípios tão íntimos de nossa Constituição, como o da igualdade, somente as respostas dadas pelo Estado, e aqui incluo o Poder Judiciário como fiel da balança das escolhas políticas, poderão legitimar a crença de que somos uma democracia.

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É nítido que estamos cada vez mais terceirizando à iniciativa privada a expectativa de respostas sobre nossos valores constitucionais mais complexos, cobrando cada vez mais das empresas privadas, e não do Estado, posicionamentos ativos em relação à promoção de políticas reparadoras, acreditando que a eficiência da esfera privada suprirá nossas angústias e desejos.

As empresas privadas o farão, mas apenas enquanto lhes for interessante, comprometidas que são, ao fim e ao cabo,  com elas próprias.

Fora daí, como dizia Machado sobre o mundo, tudo é ilusão. O autor, na verdade, dizia ilusão e mentira, mas ilusão basta.

*André Marsiglia Santos é advogado especializado em liberdades de expressão e de imprensa. Membro da Comissão de Liberdade de Imprensa da OAB-SP, e da Comissão de Mídia e Entretenimento do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp). Idealizador da L+: Speech and Press e sócio do Lourival J Santos Advogados

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