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O que está virando o PL que já não é mais das fake news

Por Marco Antônio Sabino
Atualização:
Marco Antonio Sabino. FOTO: DIVULGAÇÃO  

Ele começou estranho, muito estranho, e está terminando mais estranho ainda. O Projeto de Lei 2630/2020, em trâmite na Câmara dos Deputados, institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. É necessário cautela com as palavras. Alguns dos mais nervosos regimes autoritários, por exemplo, são a tônica de países que proclamam em seus nomes a liberdade e a democracia: República Popular da China, República Democrática do Congo, República Bolivariana da Venezuela.

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O último relatório apresentado pelo deputado Orlando Silva mostra o modo açodado e, talvez, pouco transparente com que a norma projetada tramitou. Hoje, o PL das Fake News transformou-se em um PL do Facebook, Google, Instagram, Twitter, dentre outros. Confesso que entendo que alguma regulação sobre a internet é necessária, sim, mas me incomoda demais quando liberdades como a livre iniciativa são resolvidas na canetada, e não pelo mercado, salvo em caso de patologias concorrenciais.

Não é o que se vê do último relatório. Há alterações importantes que não têm qualquer relação com fake news, mas, antes, impõem obstáculos à atividade econômica dos grandes intermediários, além de prejudicar o fluxo de ideias na rede. Inclusive, em vários casos fica difícil entender os motivos da regra proposta.

Veja-se, por exemplo, o caso do fim da publicidade personalizada. Todos que frequentam a internet sabem que os intermediários desenham seus algoritmos para exibir ao usuário conteúdos de sua preferência. No caso da publicidade, esses dados interagem com os dados das marcas. A proposta do GT proíbe a interação entre dados do intermediário e dos anunciantes. O impacto no mercado será gigantesco. Todas as marcas usam a internet em virtude de sua assertividade, o que a diferencia, na essência, quanto ao rádio e a TV, cuja marca é a difusão.

Então se inicia uma série de dispositivos projetados cuja compreensão de necessidade legislativa fica bastante complicada. Por exemplo: (i) a norma projetada manda que os intermediários detalhem critérios e procedimentos empregados no perfilhamento de dados para impulsionamento de conteúdo, além dos critérios, metodologias e métricas para aferição do alcance de conteúdo publicitário impulsionado.

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O que isso interessa ao usuário, senão ao concorrente? É preciso alertas que muitos desses temas são segredo industrial (v. artigos 195, XI e 206 da Lei 9.279/96); e (ii) o texto responsabiliza solidariamente o intermediário que vendeu mídia para anunciante que não apresentou documento de identificação. Curioso, porque o legislador está equiparando a venda de publicidade online à venda de armas - essa, sim, exigente de identificação, além da clara licença. E o projetado artigo 21, que exige representação no Brasil para a exibição de anúncios online no Brasil? O que farei eu quando quiser receber promoções de livros acadêmicos internacionais ou mesmo da educação dos meus filhos? A Universidade de Oxford precisará ter representante no Brasil para dirigir anúncios a brasileiros? Não tem sentido.

O artigo 38 denota a pouca reflexão do Grupo de Trabalho sobre um tema que merece, sim, aprofundamento: a remuneração de conteúdos jornalísticos que tramitam online. É óbvio que jornalistas acreditados, que estudam e investigam um assunto e aplicam princípios de ética no jornalismo e elaboram matérias, divulgam notícias ou emitem opiniões têm de ser remunerados por isso. Contudo, muitas dessas pessoas já são remuneradas pelos veículos que as empregam, outras até preferem que suas matérias tenham mais alcance, mas o que preocupa não é isso, é o fato de que qualquer um terá de ser remunerado por conteúdos informativos online, ainda que seja uma notícia de um buraco na Avenida Viera Souto ou uma enchente no Jardim Pantanal (lembrem-se: não é necessário diploma para ser jornalista, como mostra a história e entende o STF). Ah, vale lembrar que nem tudo o que transita nas redes sociais possui direito de autor.

É assustadora a previsão de disclosure de "(...) características gerais das equipes envolvidas na aplicação de políticas de conteúdos gerados por terceiros, incluindo número de pessoas envolvidas na atividade, modelo de contratação, bem como estatísticas sobre seu idioma de trabalho, qualificação, indicativos de diversidade atributos demográficos e nacionalidade;". Tive que ler diversas vezes e concluir que é isso mesmo: o legislador pretende o full disclosure das pessoas envolvidas nas atividades de conteúdos gerados por usuários e anunciantes. Que tipo de serventia possuem tais informações? É o legislador protegendo o trabalho humano e evitando o robotizado? E, afinal, qual a necessidade da disposição, sobretudo no combate às fake news?

Não há dúvida que são necessários aprimoramentos regulatórios para a internet, mas a mudança de foco em uma legislação já tão difícil, que tem a pretensão de obstaculizar o cancro das fake news, causa arrepios. Quiçá estes temas sejam revistos para que, amanhã, o legislador não ser acusado de, como se diz no popular, ter trocado os pés pelas mãos. Ah, e um pedido: parar com essa mania de enfiar penduricalhos em projetos de normas. É atécnico e pega mal. Padece de transparência.

*Marco Antonio Sabino é head de Mídia e Internet de Mannrich e Vasconcelos Advogados. Professor da FIA, Ibmec, Dom Cabral e Einstein, membro da Comissão de Liberdade de Imprensa da OABSP. Doutor pela USP. Pesquisador (Columbia, Oxford, ILD)

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