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O pecador de toga ou de @tartuffe.com.br para @desembargador.jus.br

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Por Fernando Orotavo Neto
Atualização:
Fernando Orotavo Neto. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

No Brasil, ainda hoje, vige a insigne classe dos insultadores. Como dizia Rui, são "os magarefes de certa espécie de açougues, onde se corta, na honra das almas independentes, na fama dos homens responsáveis, no merecimento dos espíritos úteis, nos serviços dos cidadãos moderados, o bife sangrento para o estômago da democracia feroz. Esta divindade alucinada, antípoda da democracia liberal e culta, disciplinada e humana, progressista e capaz, vive deglutindo majestosamente a carniça, que lhe chacina a sua matilha de hienas".

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Na verdade, o desatino midiático protagonizado recentemente por um desembargador, que chamou de analfabeto um guarda municipal, rasgou a multa escriturada e a lançou ao chão, apenas pelo fato de o agente estar a cumprir com a sua função, faz prova irrefutável de que as palavras do Águia de Haia seguem mais atuais do que nunca.

Infelizmente, no Brasil ainda vige a cultura da "carteirada" e da intimidação ("sabe com quem está falando?), claros resquícios de um coronelismo atávico, que remonta aos tempos de uma sociedade escravagista, onde alguns seres humanos se achavam no direito de subjugar outros, em razão do lugar de destaque que ocupavam na pirâmide social; embora, a meu ver e sentir, quanto maior o lugar de proeminência alcançado por um cidadão, maior é a sua obrigação moral de tratar a todos com isenção, educação e respeito.

Abstraídas as razões históricas e sociais, única explicação que justificaria tão ostensivo disparate, vou resistir à tentação de repetir o Ministro Marco Aurélio, quando disse que "na rua, a autoridade é o guarda", ou mesmo de insistir na discussão acerca da existência do crime de desacato (ainda que em tese), uma vez que, devo confessar, acomete-me uma certa preguiça intelectual sempre que me vejo na situação de ter que discutir o óbvio.

Assim, o que mais me impressionou no episódio não foi o fato de o magistrado desprezar a correta exegese do vetor axiológico da igualdade, elevado que foi à categoria de princípio constitucional, como muito bem explicitado pelo Ministro Celso de Mello em lapidar voto que proferiu na ADI nº 4562/PB (igualdade na lei e perante a lei), cuja leitura, desde já, recomendo ao desembargador "da hora"; ou de ter ele se afastado do comando previsto no art. 35, inciso VIII, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), onde está prescrito ser um seu dever (legal) "manter conduta irrepreensível na vida pública e particular".

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Decreto, realmente, não é lei, e o nosso Desembargador sabe disso. Palmas, para ele! No entanto, é norma de conduta que deve ser respeitada, especialmente quando a Constituição da República, em seu art. 23, inciso II, declara que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, "cuidar da saúde e da assistência pública". Notadamente e mais ainda, quando todos os cidadãos, sem exceção, vivem uma crise pandêmica. Seria o caso de lhe chamar de analfabeto jurídico? Não, a minha educação não o permite. Mesmo que eu discorde dos argumentos, prefiro me portar comme Voltaire (ou melhor, comme il faut)!

Com efeito, o que mais me impressiona não é a "ignorância seletiva ou excludente" de algumas pessoas que insistem em se colocar acima da lei, mas a desumanidade, muito bem retratada na humilhação conscientemente dirigida a outro ser humano, pela simples circunstância de reputá-lo inferior. O que mais me impressiona é a falta de percepção de que não é a toga que dignifica o homem, mas o homem que dignifica a toga. O que me estarrece é a falta de sensibilidade, institucional inclusive, que torna cego um homem público ao ponto d'ele não ser capaz de perceber que a sua conduta, néscia e sandeu, praticada às escâncaras, sem pudores, resvala negativamente na credibilidade do Poder Judiciário, instituição que integra e que deveria ser o primeiro a se preocupar em preservar (et pour cause), especialmente num momento extremamente delicado em que a Justiça (usada a palavra metonimicamente), prenhe de críticos, vem tentando se reinventar para o bem de todos nós, cidadãos iguais, em direitos e obrigações.

Mas não é so! Veja-se em que dilema o desembargador colocou o Poder Judiciário, notadamente, o CNJ: vai puni-lo, exemplarmente, para demonstrar à sociedade que a magistratura não se compraz com condutas dessa jaez, separando, destarte, o joio do trigo, a fim de preservar a credibilidade e a dignidade da instituição, virtudes estas que não podem ser conspurcadas por atitudes malevolentes de um de seus membros, ou vai deixar cair no esquecimento e coonestar a cultura da desigualdade perante a lei (desculpem-me: perante o decreto), contribuindo para a prevalência do tão temido l'esprit de corps?

Seja como for, o certo é que o burlesco show protagonizado pelo recidivo magistrado - dado não ser a primeira vez que o ilustre desembargador, agora notório, tentou humilhar uns guardas por aí -, não deixa qualquer dúvida: ou é fetiche (e, neste caso, só Freud explica!); ou simplesmente ele se esqueceu de ler Tartuffe, célebre personagem de Molière (nascido Jean-Baptiste Poquelin) que dá nome ao seu mais festejado livro, e que é conhecido como o maior patife intelectual da literatura estrangeira, dentre outros motivos, por ter dito a famigerada frase, cujo destino era fazer rir as pessoas honestas (e não fazê-las chorar): não é pecado se você pecar em silêncio! (Il n'y a pas de péché si vous péchez en silence !)

De qualquer modo, como argutamente advertia o cômico, porém sábio, personagem, já no século XVII, não é muito inteligente - ainda a mais hoje em dia, em plena era digital, época dos celulares com câmeras - pecar à luz do dia, muito menos ostentando a toga. Nem os analfabetos, desprovidos delas (inteligência e toga), fazem mais isso!

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Por fim, sinto muitíssimo ter que dizer que o francês do pitoresco e pirotécnico desembargador não é tão bom quanto ele pensa que é! Padece da natural musicalidade, característica medular da língua francesa, além do sotaque ser sofrível.

Fica a decepção...

*Fernando Orotavo Neto é advogado, professor e jurista

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