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O ocaso da Lava Jato?

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Por Rogério Tadeu Romano
Atualização:
Rogério Tadeu Romano. Foto: ARQUIVO PESSOAL

I - O FATO

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Após a exoneração coletiva de procuradores que atuavam em um grupo de trabalho da Operação Lava Jato, o procurador-geral da República, Augusto Aras, divulgou uma nota neste domingo rebatendo críticas, dizendo que a operação não é "órgão autônomo" e que não pode se tornar "instrumento de aparelhamento".

Em passado recente, com a tentativa de criação de uma fundação, os procuradores que atuavam na lava-jato assumiram compromissos pelo MPF, falando pela instituição, "sem poderes para tanto". Segundo a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, o acordo deixa "bastante evidente" o protagonismo de determinados membros da instituição, "singularmente os que integram a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba".

II - A TEORIA DO ÓRGÃO

A lava-jato não é órgão autônomo do Ministério Público Federal.

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Costuma-se dizer que órgão público é uma unidade com atribuição específica dentro da organização do Estado. É composto por agentes públicos que dirigem e compõem o órgão, voltado para o cumprimento de uma atividade estatal.

Os órgãos públicos formam a estrutura do Estado, mas não têm personalidade jurídica, uma vez que são apenas parte de uma estrutura maior, essa sim detentora de personalidade. Como parte da estrutura maior, o órgão público não tem vontade própria, limitando-se a cumprir suas finalidades dentro da competência funcional que lhes foi determinada pela organização estatal.

Celso Antônio Bandeira de Mello (Apontamentos sobre os agentes e órgãos públicos, segunda tiragem, pág. 69), examinando o conceito de órgão, conceituou este como:

"Unidades abstratas que sintetizam os vários círculos de atribuições do Estado. Estes devem ser expressados pelos agentes investidos dos correspondentes poderes funcionais, a fim de exprimir na qualidade de titulares deles, a vontade estatal".

Marcello Caetano(Manual de direito administrativo, 1965, pág. 154) definiu os órgãos públicos nos seguintes termos:

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"Órgão é o elemento da pessoa coletiva que consiste num centro institucionalizado de poderes funcionais a ser exercido pelo indivíduo ou pelo colégio dos indivíduos que nele estiverem providos, com o objetivo de exprimir a vontade juridicamente imputável a essa pessoa coletiva".

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Disse bem Celso Antônio Bandeira de Mello que há dois problemas, no exame da matéria, que não se fundem e não têm porque serem fundidos. Um deles é o do querer e do agir do Estado; outro é o da repartição de atribuições em diferentes unidades.

III - OS EXCESSOS

Excessos foram cometidos: prisões preventivas alongadas, visando ao desespero dos investigados, via delação premiada (um instrumento de origem Filipina, em 1603), uma forma de tortura moderna; a condução coercitiva feita para desmoralizar e diminuir a força psicológica dos conduzidos à polícia para depor, impondo algo contra si mesmo. Todos esses desvios foram detectados pelo Supremo Tribunal Federal na defesa dos preceitos fundamentais. Somo ainda a isso as anulações, pelo STF, de decisões condenatórias feitas sem que se desse à defesa a palavra, após as alegações finais promovidas pelos réus que assinaram acordos de delação com o Parquet. Isso era uma afronta ao devido processo legal. A fixação da condenação em segunda instância em afronta ao princípio da presunção de inocência foi outro ponto onde se feriu direitos e garantias individuais.

IV - O DIREITO PENAL DO INIMIGO

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Aplicou-se o que se chamou de direito penal do inimigo.

Observo o que transcrevo do artigo de Charloth Back (Mensagens secretas da lava-jato: autoritarismo e direito penal do inimigo (político):

"O material que veio a público por meio do site The Intercept Brasil nestes últimos dias expõe, inequivocamente, os contornos espúrios da Operação Lava Jato e, principalmente, do julgamento do ex-presidente Lula (PT). Foi revelada a existência de manipulação e conluio entre membros do Ministério Público Federal (MPF) e da Justiça Federal, com o claro objetivo de usar todos os meios existentes, lícitos ou ilícitos, para condenar Lula - considerado um inimigo que precisa ser combatido e massacrado -, destruir os grupos políticos ligados ao seu governo e de Dilma Rousseff (PT) e construir uma estratégia político eleitoral nas eleições de 2018, ainda que para isso tenha sido necessário macular o Direito, flexibilizar as garantias processuais e desnaturalizar os princípios constitucionais. Assim, foi aplicado de forma explícita o Direito Penal do Inimigo, mascarado por detrás do discurso de "combater a corrupção no Brasil".

Essa doutrina jurídica foi criada na década de 1980 pelo jurista alemão Gunther Jakobs, mas ganhou força no governo de George W. Bush após o ataque às Torres Gêmeas de 2001, e, principalmente, a partir das invasões norte-americanas ao Afeganistão e ao Iraque. Sob o argumento de "segurança nacional", "legítima defesa" ou de "combate ao terrorismo" - o proclamado mal do século XXI - certas pessoas, por serem consideradas inimigas da sociedade ou do Estado, não deteriam todas as garantias e proteções penais e processuais penais que asseguradas aos demais indivíduos. Em nome da "defesa da sociedade", as garantias penais mínimas consagradas pelas constituições e pelos instrumentos internacionais de proteção dos Direitos Humanos, como a presunção de inocência, a vedação da condenação sem provas, o princípio da legalidade, a neutralidade do julgador, a proibição da tortura, bem como o impedimento de obtenção de provas por meios ilícitos, não se aplicam aos proclamados "inimigos sociais".

Jakobs propõe a distinção entre um Direito Penal do Cidadão, que se caracteriza pela manutenção das normas, das garantias penais e dos limites ao poder de punição e investigação do Estado, e um Direito Penal do Inimigo, totalmente orientado para combater os "perigos sociais", que permite que qualquer meio disponível, lícito ao não, seja utilizado para punir esses "não-cidadãos". Não se trata, portanto, de contrapor duas esferas isoladas do Direito Penal, mas de descrever dois polos de um só mundo e de visibilizar duas tendências opostas em um só contexto jurídico-penal.

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Nesse contexto, há o Direito Penal do Cidadão, cuja tarefa é garantir a vigência da norma como expressão de uma determinada sociedade e o Direito Penal do Inimigo, ao qual cabe a missão de eliminar perigos. No último caso, ocorre uma verdadeira caçada ao autor de um suposto delito, pois o agente é punido pela sua identidade, por suas características e personalidade. Pune-se o autor, e não a conduta delitiva em si. Reprova-se a periculosidade do agente e não sua culpabilidade. A aplicação do Direito Penal do Inimigo significa a suspensão de "certas normas" para "certas pessoas", o que é justificado pela necessidade de proteger os "homens de bem", a sociedade ou o Estado contra determinadas ameaças coletivas."

E prossegue-se naquela leitura:

"No contexto brasileiro, o Direito Penal do Inimigo tem sido usado na autoproclamada missão do Judiciário e do Ministério Público de "combate à corrupção". Lula e demais políticos da esquerda estão sendo tratados como verdadeiros inimigos e não como cidadãos acusados em um processo crime; ou seja, os réus aqui não são sujeitos de direito, ou mesmo alvos de proteção jurídica. São, na verdade, objetos de coação, desprovidos de direitos e da proteção jurídica mínima a que todos os seres humanos têm direito, mesmo aqueles investigados por crimes. Cabe lembrar que a utilização do Direito Penal do Inimigo no Brasil não é uma inovação da Operação Lava Jato e de seus articuladores - nas operações policiais nas comunidades mais pobres e nas periferias, a regra é tratar tanto os criminosos como a população em geral de maneira equiparada a "inimigos sociais", vide o episódio dos 80 tiros contra uma família negra no Rio de Janeiro.

Os métodos jurídicos que têm sido usados na Operação Lava Jato, principalmente quando se refere à investigação penal, são extremamente questionáveis face à nossa Constituição e às garantias mínimas do devido processo legal do Direito Internacional. Obtenção de delação premiada por meio de acosso, grampos em escritório de advocacia, divulgação de áudios obtidos de forma ilícita, como no caso da conversa entre Lula e a então presidenta Dilma Rousseff, e a exibição pública dos acusados, configuram uma série de condutas claramente ilegais.

A franca utilização do Direito Penal do Inimigo ao longo de toda Operação ficou evidenciada nos áudios e nas mensagens trocadas entre o ex-juiz Sérgio Moro. o procurador da República Deltan Dallagnol e membros do MPF, responsáveis pela condução dos processos, e foi identificada principalmente pela persecução seletiva, pela assimetria entre a defesa e a acusação, pela parcialidade do juízo, em todas as instâncias, e pela colaboração estreita com a mídia. Em primeiro lugar, entendeu-se, para muitos, que foi inegável a constatação de que houve persecução seletiva, minuciosamente instruída pelo ex-juiz e combinada nos mínimos detalhes com o MPF, por meio de sugestões sobre encaminhamentos, reprovação sobre a atuação de procuradores, criação de denúncia anônima, entre outras. Todas elas denotam uma conduta incestuosa: o Poder Judiciário, que deveria ser o garantidor de direitos foi o que violou as principais garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do julgamento imparcial.

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Em segundo lugar, existiu um completo desequilíbrio entre a defesa e a acusação, a qual sabe de antemão quais serão as decisões do Juízo, recebe orientações processuais sobre supostas provas e evidências e combina estratégias jurídicas e políticas com o ex-magistrado. Essa situação é típica de uma jurisdição inquisitória, que se arroga das funções de investigar, acusar e julgar, e que trata a defesa dos réus como se fosse uma mera formalidade, desprovida de qualquer possibilidade de influência nos rumos do processo, mitigando sua real importância no exercício da justiça e das garantias democráticas.

Por trás de um discurso pretensamente democrático e de "defesa dos bens públicos", está um autoritarismo judicial dissimulado, típico de Estado de Exceção e da aplicação do Direito Penal do Inimigo. As normas e instituições jurídicas são empregadas de forma traiçoeira, visando minar os processos políticos emergentes e tendendo à violação sistemática dos direitos, o que constitui a prática do lawfare: a guerra por via jurídica, trazida da jurisprudência do direito militar, na qual se neutraliza o inimigo sem recorrer à guerra, somente por meio da lei e de outros instrumentos jurídicos institucionalizados. O Direito serve como uma arma para atacar grupos adversários, retirar-lhes a possibilidade de defesa e diminuir - vale dizer, "legalmente" - suas possibilidades de reação."

V - CONCLUSÕES

Ao final, dir-se-á que, na onda da lava-jato, criou-se um movimento que acabou por parir o que hoje se tem de extrema-direita no poder.

*Rogério Tadeu Romano, procurador regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado

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