Há uma sensação, em grande parte do mundo, de que estamos decaindo. Isso porque o paradoxo entre as conquistas científico-tecnológicas e o aumento da miséria e da desigualdade, escancarou-se com a pandemia. O tecnicismo, o apego ao moderno, ao up-to-date, relegou a preocupação com o espírito e a cultura para um lugar insignificante nos debates contemporâneos.
Essa percepção não é de hoje. Wittgenstein enxergava a situação com certo otimismo: "Disse um dia, e talvez estivesse certo: da antiga cultura só restará um amontoado de escombros, e para terminar, um amontoado de cinzas, mas haverá espíritos que flutuem sobre essas cinzas".
Os escombros e as cinzas são visíveis. Mas quais os espíritos que estariam flutuando sobre tudo isso?
O debate que atrai atenção generalizada é muito pobre. Na verdade, fica na superfície de questões medíocres: alguém disse algo que causou reação nas redes sociais. Assuntos menores, triviais, aquilo que os americanos chamam "gossips" e nós chamamos "fofoca" ou "diz-que-diz".
Há artigos mais consistentes. Estes não chegam ao grande público. É porque estamos num país de iletrados? Estamos em fuga, aterrorizados em virtude da pandemia, não queremos mergulhar em coisa séria?
O Brasil sempre teve uma elite intelectual que oferecia projetos, fazia diagnósticos, motivava discussões, propunha a arregimentação de pessoas para um protagonismo transformador.
Onde está a Academia? Falta liderança cultural que galvanize todos os talentos, assim como não está surgindo a terceira via para a política?
Paul Valéry escreveu que estamos entrando no futuro de costas. Qual é o futuro do planeta? O futuro se circunscreve às certezas científicas. Faz-se um prognóstico ou uma profecia meramente técnica.
Os vaticínios são nessa linha: a inteligência artificial talvez seja a última invenção humana. A partir daí, ela própria cuidará de inventar o que vier a ser necessário ou resultar de sua iniciativa, sem a participação de qualquer inteligência dos homens.
Haverá uma relação direta entre cérebros, mediante a conexão de um cérebro a vários outros. Isso reside no campo da neurociência da interação social. Mas onde estão os filósofos, para ofertar um quadro menos tétrico para esta humanidade que permanece a ser cruel com o único habitat disponível, este combalido planeta, inclemente em relação aos excluídos, aos invisíveis, aos despossuídos?
Será que elucubrar sobre as próximas eleições, acompanhar o dia-a-dia de políticos, ecoar suas frases, é mais importante do que tentar cuidar das diversas patologias da sociedade humana?
Como fazer com que o governo sirva ao povo e não se sirva do povo? Prosseguiremos a acompanhar o crescimento atípico das estruturas estatais, o aumento do gasto com o seu sustento, a manutenção de Fundos Partidário e Eleitoral, a preservação da mais iníqua tributação, paralela a um endividamento suicida?
Onde estão os modelos para uma educação que substitua as insossas aulas prelecionais, que - em regra - pouco atraem crianças e jovens, muitos deles millenials, com excepcional desenvoltura para manejar as bugigangas eletrônicas, onde encontram informações mais atualizadas, coloridas e sonoras?
Como fazer com que as descobertas e funcionalidades das tecnologias cheguem a todos os humanos, contribuindo para a equânime disseminação da ciência e, ao final, humanizando o convívio?
Há muita "carreira solo", de intelectuais que escrevem, publicam, dão azo à sua imaginação. Mas não existe uma coordenação capaz de elaborar um projeto de futuro para a humanidade. Não as megatendências norte-americanas, que têm expertise para detectar o que acontecerá com a economia, com a ciência, com a tecnologia. Mas algo que tentasse ingressar num território fluido, que é saber o que será o ser humano daqui a cinquenta anos. A humanidade vai se aprimorar, ou vai continuar a ser um mosaico de distinções, cada vez mais acentuadas, contribuindo o "progresso" para aprofundar o fosso entre incluídos e definitivamente excluídos?
Há lampejos de inteligência acesos aqui e ali. Mas uma vela só, não reduz a escuridão reinante. Haverá alguma possibilidade de reunir todas elas, iluminando o pensamento para viabilizar a caminhada pela selva ignara da insensibilidade e do imediatismo egoístico?
Não é só o ambiente natural que pede socorro. O ambiente moral também precisa de cuidados. Quem se habilita a propiciá-los?
*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras - 2021-2022