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O Ministério Público, a imprensa e os espelhos. A história da PEC 5 de 2021

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Por Ricardo Prado Pires de Campos
Atualização:
Ricardo Prado Pires de Campos. Foto: MPD/DIVULGAÇÃO

O Ministério Público, no passado, já foi o procurador do Rei em juízo, mas, gradativamente, foi ganhando sua autonomia e passou a representar a sociedade, e não mais os ocupantes do Poder. Estes continuam a ter os seus advogados, mas, agora, são representados pela AGU - Advocacia Geral da União - ou pelos procuradores do Estado, nas unidades da Federação.

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O termo procurador gera alguma confusão, pois, os procuradores da República e da Justiça são membros do Ministério Público, no âmbito federal ou estadual, mas os procuradores do Estado, por exemplo, não integram o MP. Essa profusão de designações semelhantes, por vezes, gera certa confusão pelo público. Nem todos dominam com segurança a diferença existente entre um cargo e outro.

Os procuradores do Estado e os advogados da União são os profissionais responsáveis por defender os interesses dos Estados e da União junto aos diversos órgãos do Poder Judiciário.

Já os promotores de Justiça, os procuradores de Justiça e os procuradores da República integram os Ministérios Públicos e representam a sociedade em juízo. Defendem os valores inscritos na Constituição e nas leis do país. Em geral, atuam em processos que vão além de interesses individuais definidos, mas alcançam questões de interesses difusos ou coletivos.

Recentemente, as reclamações da classe política contra o Ministério Público têm se avolumado, e ganhado as manchetes dos jornais. Chegaram a se materializar em diversos projetos de lei, dentre eles, as mudanças na Lei de Improbidade e a PEC 5 de 2021, chamada de PEC da Vingança.

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Os atritos entre membros do Poder Político e do Ministério Público têm várias origens, mas uma das mais importantes, é inquestionável, se deve a fiscalização do uso dos recursos públicos, pois, promotores e procuradores passaram a promover inúmeras ações civis públicas e ações penais contra os ocupantes de cadeiras nos Legislativos e nos Executivos. Há, também, conflitos em demandas envolvendo questões ambientais, na área de saúde pública, urbanismo, e muitas outras.

Alguns políticos reclamam, por vezes, que os promotores estão querendo administrar as Prefeituras ou inviabilizam os governos, pois, os administradores estariam deixando de decidir com receio das ações de responsabilização do MP.

Ora, vai aí um certo exagero. Todavia, é preciso registrar que, na medida em que somos um país onde se legisla exageradamente (muito diferente dos países de origem anglo-saxônica), pois, tudo depende de lei, isso acaba favorecendo à intervenção da Justiça e do Ministério Público, posto que cabe a este último cobrar o cumprimento das leis. Quando o Prefeito ou a Câmara Municipal reconhecem um determinado direito para a população, pode ser vaga em creche, distribuição de medicamentos, ou cria nova postura para o Município, seja em relação à coleta de resíduos, seja em matéria ambiental, toda essa legislação passa a possibilitar que o Ministério Público acione os gestores públicos visando o cumprimento desses direitos ou deveres. Se o gestor público não se apressar em cumprir a legislação aprovada, poderá vir a ser acionado.

O papel do Legislativo é definir as prioridades para o país e distribuir o orçamento para o atendimento desses objetivos. O Poder Executivo deve implementar os serviços determinados na legislação. E o Ministério Público deve fiscalizar essa execução. Tudo visando atingir o mais alto grau de eficiência.

Para dar concretude às normas aprovadas pelos parlamentos existem os executivos municipais, estaduais e federal. No entanto, quando esses executivos não executam suas funções a contento, surge a possibilidade do Ministério Público acionar o gestor público para cobrar o cumprimento da norma.

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Se o Poder Legislativo decidiu que um determinado serviço era obrigação do ente federado, colocou verba à disposição do gestor, prefeito, governador ou presidente, e, ainda assim, o serviço ou a obra não foi realizada, ou foi mal realizada, ou teve seus recursos desviados. Ora, em todas essas circunstâncias, a ação do Ministério Público passa a ser possível, especialmente se previsto como atribuição da Instituição. E as atribuições são muitas (artigo 129 da Constituição Federal).

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Portanto, temas para conflitos entre os executivos e os membros dos Ministérios Públicos são muitos.

Registre-se que promotor ou procurador não dá ordem para prefeito ou gestor público, o máximo que pode fazer é uma Recomendação, mas sem caráter de cumprimento obrigatório. É um aviso para o gestor público de que o promotor está entendendo que determinada conduta do gestor público está contrária à legislação e, portanto, deve ser corrigida. Se o gestor insistir, e pode insistir (se tiver convicção de que está correto), restará ao membro do MP acionar o Poder Judiciário para que, então, o juiz decida a causa, ou decida com quem está a razão.

Afinal, o Poder Judiciário exerce a competência de interpretar à Constituição e às leis, nas dúvidas e nos conflitos, cabe a ele dirimir. Não é o Ministério Público quem exerce tal função.

Ministério Público e Poder Judiciário possuem carreiras semelhantes, equiparadas, com uma se espelhando na outra, mas exercem funções distintas e, de certa forma, complementares. Suas competências são definidas de forma diferente, pois, enquanto o Judiciário é um Poder inerte, em regra, não agindo de ofício, visando preservar sua imparcialidade; o Ministério Público não tem essa limitação, pelo contrário, o MP deve agir de ofício, inclusive acionando o Poder Judiciário para que este venha compor o conflito. O MP tem o dever de acionar, o Judiciário tem o dever de decidir.

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Portanto, quem deve dirimir os conflitos entre os membros do Executivo e do Legislativo e o Ministério Público é o Poder Judiciário. Não pode o Poder Legislativo querer subjugar os membros do Ministério Público a seus desígnios, pois, isso ofende o princípio da separação dos poderes (art.2º da Constituição Federal) e a autonomia do Ministério Público e a independência funcional de seus membros (art.127 §§ 1º e 2º CF), dado que o MP integra a função jurisdicional do Estado, não faz parte do Poder Legislativo, nem do Executivo.

A PEC 5, de 2021, mesmo em sua versão original, que aliás, já está implícita no substitutivo, porque, enquanto o rol de maldades no projeto original eram duas, no substitutivo passaram a ser inúmeras, mas mantidas as duas originais, ou seja, tudo visando o aumento da ingerência da Câmara dos Deputados no âmbito interno do MP, seja pela ampliação das cadeiras no Conselho para abrigar mais pessoas indicadas pelo Legislativo (na proposta original mais 1, no substitutivo mais 3, sendo que indicam 2 na atualidade), e também, através da possibilidade de nomeação do Corregedor do CNMP pelo Legislativo.

Assim, a proposta original da PEC sequer pode ser submetida novamente à votação na mesma sessão legislativa, dado que o § 5º do artigo 60 da Constituição Federal veda essa possibilidade: "A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa".

O que alguns políticos não entenderam até o momento, em verdade, é o papel do Ministério Público na sociedade brasileira, como definido na Constituição Federal. Não entenderam ou não querem entender.

O Ministério Público exerce no interior do Estado (aqui abrangendo Prefeituras, Estados e União), o mesmo papel que a Imprensa exerce no âmbito da sociedade, o papel de espelho.

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O espelho registra o passar do tempo, aponta os cabelos brancos ou a ausência daqueles que caíram, marca as rugas e as cicatrizes, e muitos sequer gostam de se olhar no espelho em razão dessas constatações. A imprensa registra as mazelas nas relações sociais, denunciando diariamente os escândalos, faz o papel de espelho da sociedade.

Pois bem, o Ministério Público exerce o papel de espelho (ou voz) da sociedade no âmbito dos Poderes. Tem o dever de espelhar as mazelas do Estado e da gestão pública. Por esse motivo, acaba sendo odiado por alguns que não entendem ou não aceitam se verem refletidos.

É preciso registrar, no entanto, que o espelho pode trazer notícias incomodas, mas graças a ele podemos corrigir falhas antes de se tornarem irreversíveis. A realidade pode ser dura, mas enxergar os erros, possibilita à correção.

Tentar negar ou esconder os graves problemas das administrações públicas brasileiras não as transformará em modelos de excelência. Apenas o reconhecimento das falhas, a discussão de propostas de correção, e o desenvolvimento de novas soluções, podem fazer com que a administração pública atinja a eficiência necessária ao desempenho de suas funções e o país possa se desenvolver.

O Ministério Público está incomodando porque está fazendo sua parte de denunciar as mazelas no âmbito do estado. Destruir o espelho (ou o aparelho de ressonância magnética) não nos livra do "câncer" instalado no organismo, ao contrário, o aparelho é fundamental para o diagnóstico e, também, para verificar se o tratamento está dando resultado. Dirigir às cegas, no mundo atual, é de uma ignorância ímpar.

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Esperemos que a sociedade e a classe política não se associem a este projeto macabro de tentar destruir o aparelho de diagnóstico sob o argumento de que resolverá a doença. É o mesmo que receitar cloroquina para o vírus da Covid 19, só agravará o problema.

É o mesmo que receitar censura para a imprensa como se isso apagasse às mazelas de certas pessoas.

Sugestões de aprimoramento serão sempre bem-vindas, mesmo em matéria disciplinar, mas isso não pode jamais inviabilizar o funcionamento da Instituição.

*Ricardo Prado Pires de Campos é professor e mestre em Direito Processual Penal. Foi promotor e procurador de Justiça de 1984 a 2019. Atualmente exerce a presidência do MPD - Movimento do Ministério Público Democrático, associação de membros do Ministério Público brasileiro

Esta série é uma parceria entre o blog e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Acesse aqui todos os artigos, que têm publicação periódica

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