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O mal travestido de normalidade

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Por Carla Fiamini
Atualização:

Carla Fiamini. Foto: Divulgação

Não conheço a vítima! Não tenho nada a ver, inclusive, com o fato de ela ser ou não travesti; se faz programa ou não! Se fez algo que desagradou um ou muitos! Por outro lado, acredito que, como sociedade, temos TODOS a ver com o fato de a intolerância, de forma assustadora, estar ocupando cada vez mais o espaço da sensatez no Brasil.

Temos TODOS a ver quando nada fazemos ao testemunharmos a intransigência de mãos dadas à brutalidade oferecendo aos olhos da sociedade, em tom de "normalidade", as lamentáveis cenas do vídeo que viralizou nas redes sociais na última semana e que dá conta de dois homens espancando uma travesti, em plena luz do dia, em Suzano-SP, município da região metropolitana do Estado de São Paulo. Ironicamente, era um sábado de Carnaval, que quase se tornou o túmulo do samba para Ana Carolina Leal, de 26 anos.

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Apesar de a vítima gritar e implorar para que não fosse mais arrastada pelo paralelepípedo e agredida com um pedaço de madeira, sem a mínima possibilidade de defesa - já que um homem a segura, enquanto o outro desfere sem misericórdia os golpes -, NINGUÉM que passava pelo local naquele momento, seja de carro, a pé, de bicicleta ou de moto (e as cenas aferem essa triste constatação) interveio, parou para ajudar ou chamou por socorro! Não há reação - somente, contemplação acompanhada por um tom solene de conformismo!

Não acredito que devemos tomar decisões criminosas, muito menos as motivadas por preconceito, por medo ou por raiva, seja por travestis, gays, negros, brancos, mulheres, jornalistas ou por quem quer que seja, só para se fazer a Justiça que cabe na hora; muito menos precisamos resgatar da Mesopotâmia a Lei de Talião "olho por olho, dente por dente" para justificar um possível delito e tão pouco discriminação. Pelo contrário: devemos é começar a temer a hipótese de uma violência desse calibre ser considerada banal por quem a presenciou e, justamente, em razão disso, nada fez! Também chega a me dar calafrios a possibilidade de ninguém nada ter feito por pura covardia, naquele afã de escapar da censura dos ditadores e da opinião alheia, lançando mão do "bom e velho" "não é comigo".

Tão preocupante quanto à intolerância faminta, abusiva e, muitas vezes, incentivada, mesmo que de maneira velada e disfarçada de anedotas de gosto questionável, é a impunidade que insiste em resistir às leis vigentes no Brasil, bem como à falta de atenção dos poderes constituídos face à transfobia e a qualquer tipo de expediente que flerte com o risco de morte das minorias. Afinal, enquanto a travesti cicatriza suas feridas e luta com as memórias que ativam sua dor física, a dupla de agressores - fortes candidatos a sexistas que negam ao outro a condição de sujeito de direito -, estão onde e fazendo o que?! "Seguindo com o baile?", como se diz por aí?

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Independentemente do desfecho civil e criminal deste caso e que contribui para que o Brasil continue a liderar diversos rankings internacionais de países que mais registram homicídios e tentativas de homicídios de travestis e de transexuais, os dois homens que espancaram a vítima em Suzano, quem viu tudo e nada fez, e quem sabe de algo que possa auxiliar na identificação dos criminosos, mas, mesmo assim, escolhe o silêncio como cúmplice, põem em dúvida a própria teoria evolucionista. O primata perguntaria: "valeu a pena?"

Fato é que, o temor de respeitar e de aceitar o outro, o receio do julgamento e o medo de ignorar a violência precisam morrer de fome no País, sem direito à chance de sobreviverem como se fossem meros resultados da liberdade de expressão e de um conservadorismo tão autêntico quanto a um uísque 12 anos falsificado!

Carla Fiamini é graduada em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo; pós-graduada em Docência no Ensino Superior; pós-graduanda em Neurociência e Comportamento; especialista em Assessoria de Imprensa, com ênfase em Órgãos Públicos, Mandatos e Eleições; em Gerenciamento de Crise e Média Training; escritora e palestrante

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