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O machismo estrutural nosso de cada dia

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Por Lídice Leão
Atualização:
Lidice Leão. FOTO: ARQUIVO PESSOAL Foto: Estadão

"Você já é de um núcleo conhecido porque é casada com o Lucas, vocalista do Fresno. Você já tem uma fama pelo nome diferente da sua filha..."

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"Eu não sou conhecida por ser casada com o Lucas. Sou conhecida porque sou tetracampeã mundial e primeira mulher a vencer o X Games."

O diálogo, em tom amigável mas assertivo, aconteceu esta semana, em pleno século 21, época em que o machismo escancarado não é mais admitido, pelo menos entre a camada mais jovem da população. Época em que os homens mais jovens e os adolescentes já começam a entender que muitas afirmações sobre as mulheres e atitudes antes consideradas normais já não fazem mais sentido.

As aspas que abrem este artigo foram ditas em uma entrevista, por um jornalista esportivo relativamente jovem e que, com certeza, trata as mulheres com respeito, igualdade de direitos e mantém esse discurso no seu cotidiano profissional e pessoal. Se for casado, certamente é da geração que divide as tarefas com a mulher. Se não for, certamente defende este tipo de comportamento do novo homem.

A segunda afirmação, logo abaixo, é da skatista Karen Jonz, tetracampeã mundial de skate - esporte que estreou este ano nos Jogos Olímpicos de Tóquio - e ganhadora do primeiro ouro feminino nos X Games - torneio considerado os "jogos olímpicos dos esportes radicais". Além de skatista campeã entre as melhores do mundo, Karen é musicista e youtuber; seu canal, "Garagem de Unicórnio", tem mais de 400 mil inscritos. Desde que começou a Olímpiada, Karen Jonz vem fazendo sucesso também como comentarista das transmissões dos jogos, especificamente das competições de skate, modalidade em que outra mulher, a linda brasileirinha Rayssa Leal, de apenas 13 anos, ganhou prata e trouxe alegria e inspiração para todas nós. Karen, com seu estilo espontâneo, bem-humorado e de quem sabe o que está falando, conquistou o coração da torcida brasileira que acompanha as transmissões e quer entender mais sobre o skate.

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Mas... Apesar deste currículo invejável para qualquer skatista do gênero masculino, o jornalista se referiu a Karen Jonz como "casada com o Lucas, vocalista do Fresno". Aposto que você, assim como eu, não faz ideia de quem seja o "Lucas, vocalista do Fresno". Acreditamos, eu e você, que seja um rapaz legal, talentoso e inteligente. Afinal, uma mulher como a Karen Jonz não ficaria casada e teria uma filha com qualquer um. Ela interrompeu o jornalista imediatamente e o corrigiu na afirmação estruturalmente machista. O entrevistador se desculpou nas redes sociais e ligou para a tetracampeã para também pedir desculpas. Que foram aceitas.

O vídeo está na internet para quem quiser ver e deixou todas nós, mulheres, de alma lavada. Afinal, é com atitudes como a da Karen, no dia a dia, todos os dias, que vamos desconstruindo o machismo que paira na formação estrutural da nossa sociedade, machismo que vamos herdando e transmitindo inconscientemente através das gerações.

A identidade da mulher só existe se for condicionada à identidade de um homem. Ainda hoje. No livro "De quem é essa história? - Feminismos para os tempos atuais", a historiadora e ativista Rebecca Solnit comprova, citando diferentes fatos históricos, como o encolhimento compulsório da mulher apenas à vida privada arrancou dela a oportunidade de escrever a própria história. E como mulheres que não se conformaram com esse lugar e seguiram por um caminho diferente tiveram os seus passos apagados. No entanto, o livro mostra também que estamos em um momento de transformação de comportamentos e estruturas. E como movimentos contemporâneos liderados por mulheres estão abrindo novos caminhos.

Posicionamentos como o de Karen Jonz e a repercussão que a fala dela teve são uma marretada bem dada no machismo estrutural nosso de cada dia.

*Lídice Leão é jornalista e mestranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social do IP-USP

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