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O luto, a fome, a resposta e a esperança

Por Henrique Andrade
Atualização:
Henrique Andrade. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Vivemos tempos incertos e tristes. Insensibilidade, mortes evitáveis, fome. A situação é complexa, é fácil nos sentirmos impotentes. Mas, a resposta dada ao que a vida nos impõe é justamente o que muda quase tudo. Em agosto de 2013, minha filha, Rafaela, e minha neta, Clara, faleceram em um acidente, no Canadá. Cruzei o continente para buscar os corpos, velá-los, enterrá-los. São rituais necessários para elaborarmos nossas perdas. O luto tem tempo e intensidade variáveis para cada pessoa. Eu convivo com ele desde então, e a pandemia o aproximou ainda mais de mim. Penso nos pais que não conseguiram velar seus filhos, nos filhos que não conseguiram velar seus pais, naqueles que não despediram de quem amavam, nas famílias que não disseram adeus aos seus. Continuo aprendendo com a dor e o luto.

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Não se supera a morte de um filho, de um neto ou de alguém que amamos. Apenas entendemos como conviver com a perda. Eu consegui encapsular essa dor. Não busco mais explicação para o vazio que persiste e me assombra. Mesmo depois de partir, minha filha me ensinou que a angústia do outro é também a minha angústia. Rafaela era nutricionista e sonhava amparar e nutrir crianças vulneráveis no Brasil. Depois de concluir o Mestrado no Canadá, ela estava de malas prontas e decidida a lutar por elas. O acidente a impediu. Realizar os planos da Rafa me mantém vivo, e foi também a minha resposta ao que a vida me impôs. Depois de um ano de morte das minhas meninas, começamos a tecer uma rede de solidariedade que permitiu criarmos o Instituto Doando Vida por Rafa e Clara (IDV). Eu, minha esposa, familiares, amigos e todos que abraçam a causa do IDV trabalhamos dia e noite para garantir uma infância digna às crianças que vivem em situação de extrema vulnerabilidade, na Chácara Santa Luzia - invasão de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e maior Índice de Vulnerabilidade Social (IVS) do Distrito Federal.

Sim, nos arredores de Brasília, a 15 quilômetros da área tombada pela Unesco como Patrimônio Mundial da Humanidade, a miséria e a desumanidade gritam. Na Chácara Santa Luzia, as moradias são paupérrimas. Os meninos e meninas amparados pelo IDV moram às margens do maior lixão a céu aberto da América Latina - desativado em 2018, mas ainda insalubre. Esses lares não estão no mapa do Distrito Federal e nem se sabe, de fato, quantos são, já que a invasão continua a crescer. Segundo um levantamento feito pelo governo local, por meio da Companhia de Planejamento do Distrito Federal - Codeplan, em 2018, a região da Chácara Santa Luzia tinha quase quatro mil domicílios. Parecem invisíveis, mas estão lá, em meio à lama nos meses chuvosos e à poeira nos meses secos. Estima-se que mais de 10 mil pessoas vivam na invasão, sem água potável, em meio ao esgoto que escorre a céu aberto, debaixo de gambiarras que puxam a luz da rede pública e largadas à própria sorte. A garotada que circula pelas vielas sem qualquer infraestrutura reflete o futuro de um Brasil mudo e apático, que não tem respostas à fome, ao abandono, à discrepância social. Essas crianças e suas famílias somam aos estudos que contabilizam o tamanho da nossa miséria.

Segundo o IBGE, 41.7% das crianças com até 14 anos viviam na pobreza no Brasil, em 2019. Antes da pandemia, 2 em cada 5 crianças sobreviviam em condições degradantes. Um estudo do Núcleo de Inteligência Social (NIS)/PUC Minas, em parceria com a ChildFund Brasil, aponta que 4.8 milhões de crianças brasileiras de 0 a 11 anos de idade viviam em estado de vulnerabilidade multidimensional até 2019. O número total correspondia a uma população semelhante à de países como Costa Rica, Irlanda ou Nova Zelândia. Alguém aposta em alguma resposta em 2020?

Infelizmente, locais como a Chácara Santa Luzia são comuns em todo o Brasil. Estender a mão às crianças que sofrem tão próximas de onde decisões que mudam rumos poderiam ser tomadas é a minha forma de tentar transformar a realidade nos arredores de onde vivo. No Instituto, elas fazem todas as refeições diárias necessárias ao crescimento saudável, têm água limpa para beber e tomar banho, participam de atividades socioeducativas, são cuidadas como toda criança tem direito. O Instituto que carrega os nomes de minha filha e neta é uma resposta coletiva.

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Até 2020, conseguimos. Os primeiros meses de pandemia tocaram o coração de muitas pessoas dispostas a ajudar. O IDV ficou de portas fechadas, mas de janelas abertas. Mesmo à distância, devida ao isolamento social, a garotada foi bem assistida. A solidariedade esteve ao nosso lado e a seriedade do trabalho executado permitiu sermos catalisadores de doações de alimentos, de produtos de limpeza, de higiene e de máscaras. Até dezembro passado, assistimos mais de quatro mil pessoas, entre crianças e adultos, acolhidas ou não pelo Instituto. Todos beneficiados pela corrente de amor ao próximo que cerca o projeto. Distribuímos 40 toneladas de alimentos, 670 kits de higiene pessoal com sabonete, creme dental e escova de dentes, esponjas, álcool-gel 70%, além de 767 kits de material de limpeza.

Então, o ano virou. As perspectivas para 2021 são sombrias, e já minaram as doações. Nosso desafio, agora, é manter o IDV de pé. O Instituto Doando Vida por Rafa e Clara é uma entidade de direito privado, sem fins lucrativos e sem envolvimento político-partidário ou religioso. Nós dependemos da ajuda de quem estende a mão ao próximo. Nós dependemos de recursos financeiros para pagar contas de água, luz, aluguel, impostos, salários, além das doações de alimentos para continuar levando cidadania às crianças que têm fome. E como sabemos, quem tem fome, tem pressa.

A Covid-19 agravou realidades que já eram dolorosas de enfrentar, difíceis de aceitar e cruéis de se conviver. Vivemos um luto. É sofrido, revoltante, em muitos momentos. Mas é possível ressignificar. Foi um pesar profundo que, um dia, ampliou minha compreensão sobre ter esperança, me permitiu entender que ela deve ser ativa. A esperança é sobre sermos atuantes, protagonizarmos as transformações. A esperança ativa é uma prática. Não é ter, é fazer. Também percebi, ao longo dessa caminhada, que muitas pessoas querem ajudar e não sabem como. Se você está nesse grupo, ou se conhece empresas e pessoas que podem ajudar, convido a conhecer nosso projeto, ainda que virtualmente, e a ter esperança ativa como a gente. Precisamos aumentar a nossa corrente do bem, continuar a proporcionar uma infância digna para as crianças da Chácara Santa Luzia. Atualmente, amparamos 66. Mas temos mais de 200 na fila de espera.

É possível impulsionar uma vida melhor à população vulnerável em nosso país sem sermos assistencialistas, sem mirarmos holofotes e palanques. O impossível é trabalhar com fome, aprender com fome. Se o momento, que é extremamente delicado, demanda assistir com comida e itens de higiene e limpeza aos que estão sem esperança e mais vulneráveis do que nunca, assistiremos. É a urgência. Descobri, ao vivenciar o desespero de famílias famintas e tristes, a oportunidade de me sentir mais útil e produtivo. Mudei a forma de falar, tornei-me ainda mais objetivo e um pedinte contumaz. Recorro a todos, amigos de longa data, novos amigos e futuros amigos. O IDV não seria uma resposta sem eles. Perdi a vergonha e imploro sem timidez a você também. Vem responder com a gente?

*Henrique Andrade, fundador do Instituto Doando Vida por Rafa e Clara

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