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O lockdown é uma aula de Direito

Por Lúcio Flávio Siqueira de Paiva
Atualização:
Lúcio Flávio Siqueira de Paiva. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Com a ocorrência da chamada "segunda onda" da COVID-19, a temática dos decretos governamentais que impõem o chamado lockdown, com fechamento compulsório de atividades consideradas não essenciais, volta ao centro do debate público nacional com toda a força. Em meio à excessiva politização do assunto, que interdita o debate proveitoso em razão das paixões ideológicas que envolve, perde-se a oportunidade de investigar o evento com um mínimo de racionalidade. No que toca ao fenômeno jurídico, trata-se de situação interessantíssima; uma verdadeira aula de Direito - e é à luz da ciência jurídica que queremos examinar a temática, com a modesta intenção de sobre ela lançar algumas luzes, ainda que muito fracas.

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De início, cumpre firmar a premissa de que tais decretos consubstanciam textos jurídicos ou textos normativos e, como tais, são fontes do direito dentro do sistema jurídico brasileiro. Evitaremos denominá-los de normas jurídicas, por nos parecer correta a distinção feita, dentre muitos, por GUASTINI[1], entre texto normativo e norma, devendo-se reservar a última expressão para o resultado interpretativo de um texto legal - e não é exatamente de interpretação que trataremos aqui.

Fato é que um texto normativo qualquer pode ser, segundo BOBBIO[2], submetido a três valorações distintas e independentes: 1) se é justo ou injusto; 2) se é válido ou inválido; 3) se é eficaz ou ineficaz. No plano do justo/injusto tem-se o aspecto deontológico do direito; no plano do válido/inválido o aspecto ontológico; no plano eficaz/ineficaz o aspecto fenomenológico[3].

Consideramos que os decretos de lockdown são uma verdadeira aula de direito exatamente porque vemos críticas e panegíricos distribuídos entre esses planos, ainda que aqueles que sobre tais decretos discorram e polemizem não tenham a exata noção disso.

No plano do justo/injusto, ou deontológico, situam-se os acalorados debates entre aqueles que, a favor dos decretos, postam-se como defensores da saúde/vida, e aqueles que, contra os decretos, ressaltam a defesa da economia/empregos. Não é nossa intenção dizer quem tem razão, mas esclarecer que esse debate se processa no plano dos conceitos de justiça (e valores) de cada cidadão.

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No plano da validade/invalidade situam-se os debates acerca da constitucionalidade e da legalidade dos decretos. Há quem os critique por considerá-los, por exemplo, incompatíveis com a liberdade individual constitucionalmente assegurada, enquanto outros os têm por perfeitamente constitucionais, já que a defesa da vida forneceria o substrato constitucional necessário à restrição episódica de determinados direitos individuais. De novo, não é nossa intenção tomar partido, mas pôr sob a luz que essa ordem de argumentos situa a problemática no âmbito da compatibilidade ou não dos decretos com o sistema constitucional e legal brasileiros, e não mais, pois, um juízo de valor.

No plano da eficácia/ineficácia situa-se o cumprimento, ou seja, a adesão pelos cidadãos aos decretos de fechamento. Aqui a diversidade de comportamentos é tremenda: há quem adira por entender justo e quem não adira por entender injusto; há quem cumpra por entender válidos os decretos e quem os descumpra por entendê-los juridicamente írritos. Veja-se que no plano da eficácia temos um fenômeno sociológico, que é a maior ou menor adesão a um determinado texto normativo pelos mais variados motivos.

Aliás, é no plano da eficácia que parece residir a maior perplexidade social, pois, em que pese o agravamento - se não colapso - do sistema de saúde nessa segunda onda da COVID-19, a adesão da população de todo o país aos decretos de fechamento das atividades econômicas é nitidamente inferior à adesão de um ano atrás; percebe-se mesmo o recrudescimento de movimentos e protestos que beiram a desobediência civil. MIGUEL REALE[4], comentando sobre a eficácia do direito, ponderava que as autoridades donde promanam as regras jurídicas podem deitá-las violentando a consciência coletiva, as tradições de um povo ou seus valores primordiais, sendo disso consequência a negativa de obediência pelos destinatários daquele ato normativo. Talvez por aí se explique em algum grau a baixa adesão da população a tais decretos.

Por fim, quem sempre teve dificuldades de entender as teorias que procuram conceituar "o que é o Direito" podem visualizar nesse caso do lockdown um excelente exemplo prático daquilo que normalmente fica só na teoria: o plano valorativo da justiça/injustiça opera no campo teórico das doutrinas jusnaturalistas, que filtram a validade de uma determinada regra jurídica em razão de ser considerada justa ou não; o plano da validade/invalidade opera no campo teórico das doutrinas positivistas, que estabelecem a validade de uma regra jurídica em razão de sua conformação formal com ordenamento jurídico (pre)estabelecido; finalmente, o plano da eficácia/ineficácia opera no campo teórico das doutrinas denominadas "realistas", que consideram válidas apenas aquelas regras jurídicas que tenham eficácia, quer por obediência espontânea, quer por imposição dos sistemas de força estatal, notadamente os tribunais.

Em conclusão: deve o leitor ter percebido que evitamos tomar partido de uma ou outra posição. É proposital. Primeiro, porque nem sempre se contribui com o clareamento de uma controvérsia tomando partido de um dos lados em disputa. Segundo, porque nossa ideia foi oferecer uma descrição do fenômeno - sem, contudo, julgá-lo - com o modesto objetivo de auxiliar o leitor a organizar seus pensamentos e argumentos sobre tão polêmico e atual tema.

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*Lúcio Flávio Siqueira de Paiva, presidente da OAB-GO

[1] RICCARDO GUASTINI, Das Fontes às Normas. São Paulo : Quartier Latin, 2005, pág. 23 e 24.

[2] NORBERTO BOBBIO, Teoria da Norma Jurídica. São Paulo : Edipro, 2016, p. 45.

[3] Idem. P. 46/48.

[4] MIGUEL REALE, Lições Preliminares de Direito. 15. Ed. São Paulo : Saraiva, 1987, p. 112.

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