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O Inquérito 4831 do STF e sua contribuição para a investigação preliminar

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Por Rodrigo Sánchez Rios
Atualização:
Rodrigo Sánchez Rios. FOTO: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Indiscutivelmente o Inquérito n.º 4831 diz respeito à necessidade de proteção às instituições da República. O ex-ministro da Justiça e Segurança Pública apresentou as condutas indevidas do presidente da República na tentativa de interferir na Polícia Federal para atingir propósitos ainda não esclarecidos, mas que contrariam o interesse legítimo do Estado. Entretanto, é preciso ressaltar a inovação trazida no cerne da investigação ao ampliar a participação defensiva no âmbito do procedimento adotado.

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A experiência pessoal, como costuma acontecer em qualquer área do conhecimento humano, enriquece a conclusão. Em 1995, ao aguardar atendimento em uma Distrital da Polícia Civil em Curitiba, presenciei a entrada de um advogado que se dirigiu ao balcão de atendimento e, respeitosamente, retirou de sua pasta a carta de intimação de um cliente a ser ouvido pela autoridade policial em breve. Ao escrivão, disse ele: "eu gostaria de saber do que se trata esta investigação". O servidor, olhando com desconfiança para o papel, chamou o delegado que, ao apanhar a intimação e fitá-la com ainda mais desconfiança, a devolveu ao advogado, respondendo categoricamente: "traga ele aqui; ele sabe do que se trata". Assunto encerrado!

Este episódio kafkiano ocorreu sete anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e da imprescindível oxigenação democrática imposta por vários de seus dispositivos ao terreno culturalmente autoritário da intervenção penal Estatal, e um ano depois da entrada em vigência da Lei 8.906 de 04 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia), que em seu artigo 7.º, inciso XIV, já assegurava ao advogado acesso à investigação policial, mesmo sem procuração, como garantia de exercício da profissão e, sobretudo, da defesa.

Avanços legislativos e jurisprudenciais ocorreram, é verdade, mas não sem luta, e com velocidade menor do que a recomendável. Apenas em 2008 a Suprema Corte editou a Súmula Vinculante n.º 14, assentando expressamente o direito do defensor em ter acesso ao conteúdo de uma investigação criminal, justamente para o exercício de seu constitucional ofício.

Tradicionalmente, justifica-se a ausência de oportunidade de fala dos investigados no Inquérito Policial invocando-se o conhecido lugar comum de que, durante a investigação, não há acusação formal contra ninguém, mas apenas uma atividade administrativa necessária para apuração de materialidade e indícios de autoria sobre um fato determinado. Assim, não havendo partes dialéticas estabelecidas, a lógica, realmente, seria a atuação unilateral dos órgãos responsáveis pela persecução penal na produção dos já citados elementos probatórios sobre o fato objeto da apuração, sem participação da vítima e, principalmente, do investigado.

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O pensamento é equivocado e não resiste ao escrutínio da realidade.

É inegável que no inquérito policial estão sendo produzidas "provas" sobre a existência do fato e sobre quem possivelmente foi seu autor. São elementos cuja produção não foi acompanhada pelo indiciado e serão encaminhadas ao órgão constitucionalmente encarregado de, se assim convencido, apresentar sua acusação ao Poder Judiciário. O Juiz, então, terá a difícil tarefa de ler tal versão, amparada em provas unilateralmente produzidas, mantendo afastada a natural tendência humana de formar convicção prévia sobre a "história de um lado só", a fim de que a fase judicial do processo não se transforme, para o réu e a sua defesa técnica, em uma simples oportunidade de contrapor o convencimento inicial do julgador.

Vislumbra-se, portanto, a necessidade urgente de voltarmos nossos olhos para o universo do Inquérito Policial, em ordem a verdadeiramente instituirmos um processo penal capaz de representar uma apreciação justa de todo o arcabouço probatório a ser avaliado judicialmente.

Nesse contexto, com grande satisfação temos observado uma virada de comportamento dos atores judiciais e de persecução penal na condução do Inquérito 4831 distribuído ao Ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal. A investigação foi instaurada por requisição da Procuradoria Geral da República a fim de apurar as declarações do ex-Ministro da Justiça, Sr. Sérgio Fernando Moro, por ocasião do pronunciamento relativo ao seu pedido de exoneração do cargo, em 24 de abril de 2020.

Tem havido, no interior desta investigação policial, uma abertura dialética sem precedentes registrados no âmbito da cultura inquisitorial brasileira em termos de fase preliminar do processo, a começar, obviamente, pelo decreto inicial de publicidade de todo o conteúdo dos elementos carreados aos autos, providência que coloca o vetusto Código de Processo Penal de 1941 no seu lugar devido: abaixo dos postulados de garantia da Constituição Federal e do plexo legislativo posterior e acorde a ela, como o já mencionado Estatuto da Advocacia.

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As audiências destinadas à colheita dos depoimentos de investigados e testemunhas estão sendo levadas a efeito nos moldes das inquirições próprias da fase judicial do processo penal, incluindo não apenas - como sempre foi costume - indagações dirigidas pela autoridade policial que preside o ato, mas também com ampla participação de representantes da Procuradoria Geral da República e das defesas técnicas, tanto do Sr. Presidente da República como do ex-Ministro Sérgio Moro.

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Esta maior participação defensiva na fase preliminar do processo penal já era uma reivindicação doutrinária relevante e encontrou recente recepção normativa no artigo 7.º, inciso XXI, do Estatuto da Advocacia, segundo o qual são direitos do advogado "assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar razões e quesitos".

Ponto polêmico atinge o registro audiovisual da reunião interministerial de Governo havida no dia 22 de abril de 2020 e que, por determinação do Ministro Relator do Inquérito, foi entregue pelo Palácio do Planalto como elemento de prova imprescindível à apuração dos fatos e colocado preliminarmente a salvo da publicidade pela nota de sigilo temporário. Também aqui há de incidir uma máxima democrática inerente ao Sistema Acusatório: a isonomia de tratamento entre as partes, concretizada pela expressão "paridade de armas".

Por evidente, se estamos elevando o Inquérito Policial a um patamar de dialeticidade equivalente àquele encontrado na fase judicial do processo penal, pelo menos no tocante ao grau de contraditório e de ampla defesa permitidos, via de consequência estamos também admitindo que existem, em seu interior, "partes processuais" (ainda que partes preliminares, digamos assim) debatendo versões contrapostas advindas da interpretação sobre o referido elemento probatório.

Desta forma, não é possível que entre duas partes com forças equivalentes, isto é, duas partes cujas defesas técnicas patrocinam o mesmo interesse constitucional -Direito de Liberdade - haja qualquer espécie de tratamento díspar relativamente à possibilidade de exame e de repercussão desta prova nos autos. Não se pode admitir que o elemento probatório, grafado com a nota de sigilo processual temporário, tenha de alguma maneira permanecido em mãos de uma das partes e não da outra, porque tal circunstância representa vantagem da primeira em relação à segunda, desequilibrando a relação jurídica e atingido diretamente a distribuição da Justiça. A Advocacia Geral da União pôde extrair trechos detalhados da captação mediante análise da cópia que se encontra em seu poder, transcrevendo em sua petição precisamente os períodos que, em seu interesse, deveriam ser publicizados, enquanto a parte adversa não teve esta mesma oportunidade.

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É imprescindível, portanto, em ordem a assentar os progressos democráticos aqui explanados no âmbito das investigações de natureza criminal, a divulgação integral do conteúdo do registro audiovisual da reunião interministerial de 22 de abril de 2020, pois como bem recentemente ensinou o professor EGON BOCKMANN MOREIRA no texto O CASO "VÍDEO DA PRESIDÊNCIA" E O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE, publicado neste mesmo blog em data de 18 de maio, "se um coletivo de agentes públicos se reúne em situações e ambiente oficiais, para o exercício de funções inerentes aos cargos, unido ao fato de que não se tem notícia de situações objetivas de sigilo qualificado, não há motivo justo para inibir a incidência plena do princípio da publicidade".

O Inquérito 4831 já constitui uma importantíssima contribuição para a transformação da investigação policial em uma fase da persecução penal compatível com os postulados Constitucionais de 1988. Falta muito pouco para se tornar uma contribuição definitiva, independentemente da notória discussão quanto ao papel exercido pelo ex-Ministro da Justiça quando responsável pela 13.ª Vara Federal de Curitiba-PR.

*Rodrigo Sánchez Rios, advogado criminalista e professor de Direito Penal da PUC-PR, representa o ex-ministro Sérgio Moro no STF

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