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O inadimplente tributário como inimigo -- parte I: o quadro atual

Por Cesar Oliveira Janoti , Gilberto Frigo Jr. e Thiago B. Sorrentino
Atualização:
Cesar Oliveira Janoti, Gilberto Frigo Jr. e Thiago B. Sorrentino. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

O inimigo contemporâneo é o indivíduo que enxovalha estruturalmente o Estado com a pretensão de desestabilizar a ordem nele estabelecida ou, quiçá, de destruí-lo, comportando-se como um "não cidadão" indigno de receber a proteção estatal inerente às garantias fundamentais atribuídas às pessoas ditas de bem.

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É dessa maneira que, simplificadamente, Günther Jakobs tem categorizado determinados sujeitos que teriam desrespeitado o contrato social de Rousseau, inaugurando a vertente jurídica que convencionou chamar de direito penal do inimigo, e também é assim que possivelmente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça estão etiquetando impiedosamente os meros inadimplentes tributários.

Alguns julgados recentes confirmam a hipótese.

Em agosto de 2018, a Terceira Seção do STJ uniformizou a jurisprudência de suas Turmas criminais ao apreciar o Habeas Corpus 399.109, ocasião em que desprezou princípios e garantias extremamente caros ao direito penal tradicional.

Mediante interpretação extensiva in malam partem, o STJ (I) ressignificou os vocábulos "descontado" e "cobrado", centrais ao tipo penal descrito no inciso II do art. 2º da Lei n.º 8.137/90, dando-lhes acepções até então desconhecidas pela língua portuguesa, (II) embaralhou os conceitos de sujeitos passivo direto e indireto da obrigação tributária com sujeito ativo do delito, fundindo-os e confundindo-os, (III) dispensou a necessidade de dolo específico de apropriação, despreocupando-se com a motivação da conduta (estranhamente o crime foi denominado de "apropriação indébita", mas o STJ dispensou o dolo de apropriação), e (IV) invocou uma suposta vontade do legislador para justificar uma cavilação hermenêutica impossível de ser alcançada a partir da literalidade do texto normativo, empanturrando a tipicidade com incertezas e subjetivismos.

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Com isso, o STJ inaceitavelmente mitigou de uma só vez os imprescindíveis princípios da legalidade, da taxatividade da lei penal e da proporcionalidade em desfavor dos reles inadimplentes tributários, os inimigos, cerceando-lhes, por conseguinte, o exercício da ampla defesa ante as interpretações volúveis do tipo penal, sob o pretexto de que estes sujeitos não seriam merecedores de tais garantias penais e processuais penais por colocarem a coletividade em risco em razão do desequilíbrio fiscal oriundo das suas condutas.

Não ignoramos e tampouco discordamos do dever de pagar tributos fundado nos princípios da solidariedade, da substancial representação democrática (não apenas formal e nominal) do benefício (este, de Wicksell), basilares à higidez fiscal do Estado e correlato à moralidade entre os contribuintes que não poderão arvorar-se de privilégios oriundos do descumprimento de obrigações tributárias, mas daí a utilizar o mero inadimplemento como motivo autossuficiente à criminalização é atitude forçosa e inaceitável de reformulação principiológica de um direito penal desprovido de proteções impessoais e do espírito de ultima ratio.

Seguindo a mesma leitura equivocada das consequências, o STF, no julgamento do RHC 163.334, realizado em dezembro de 2019, reforçou o tratamento jurídico hostil dado aos inadimplentes tributários e, em arrepio dos limites cognitivos inerentes ao recurso ordinário em habeas corpus, fixou a tese de que "o contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990".

Na ocasião, o STF repetiu e robusteceu os equívocos hermenêuticos e principiológicos cometidos pelo STJ. Segundo o douto ministro relator: (I) "uma interpretação teleológica voltada à proteção da ordem tributária e uma interpretação atenta às consequências da decisão conduzem ao reconhecimento da tipicidade da conduta"; (II) uma interpretação histórica, a partir dos trabalhos legislativos, demonstra a intenção do Congresso Nacional de tipificar a conduta; (III) "do ponto de vista do direito comparado, constata-se não se tratar de excentricidade brasileira, pois se encontram tipos penais assemelhados em países como Itália, Portugal e EUA".

Pronto! Está reconhecida a existência de um tipo penal a partir de determinada consequência jurídica, da intenção do legislador e do direito comparado, pouco importando a literalidade consignada na Lei n.º 8.137/90 e um tal princípio da legalidade supostamente assegurado pela Constituição Federal.

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Cuidado, inadimplente! Hoje, segundo o STF e o STJ, tributo descontado ou cobrado significa tributo retido ou compensado. A motivação do não pagamento é irrelevante. O que importa são os potenciais danos à coletividade e ao erário (mas qual conduta fiscal em última análise não possui relevância coletiva e ao erário?) e que em outros países a conduta é criminalizada (bem que poderíamos copiar ideias mais virtuosas de outras nações, não?).

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Nem mesmo o suposto recorte limitador da incidência do tipo penal criado pelo STF, concernente ao não recolhimento tributário contumaz, é suficiente à evitação de apenamentos indevidos. Além da imprecisão conceitual que perpetuaria a insegurança jurídica e atribuiria o reconhecimento ou não da prática delitiva ao alvedrio do julgador, a contumácia delitiva é exatamente um dos aspectos considerados por Jesús-Maria Silva Sánchez como demonstrador da transição do cidadão para a condição de inimigo, posto que o criminoso habitual, delinquente profissional, é uma pessoa persistentemente ameaçadora da comunidade e do Estado, rememorando as lições de Immanuel Kant.

Será que não é mais necessário ter uma lei penal escrita e textualmente precisa, elaborada mediante o devido processo legislativo e obediente à Constituição Federal? Não para os inimigos! Mas não podemos nos contentar com esse cenário.

Por certo, se levarmos em consideração a intenção do legislador quando da elaboração da lei penal, inegavelmente inúmeros tipos penais não poderiam ser aplicados nos dias atuais ante a inevitável incongruência entre a imaginação parlamentar e a esperada adequação típica. Mas isso raramente é aplicado a favor da defesa.

Ademais, reputar como viável uma criativa interpretação destinada a dar vida a um tipo penal natimorto com base em direito comparado, onde a legalidade talvez tenha sido observada, é anedota hermenêutica que achincalha todo acervo protetivo fundamental estabelecido pela Constituição pátria, contristando-a.

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Toda a ideia inerente ao direito penal do inimigo, cujas características principais estão patentes nas citadas decisões do STF e STJ, encontra forte oposição na doutrina alemã e de diversos outros países, merecendo destaque a afirmação de Eugenio Raúl Zaffaroni no sentido de que "a admissão jurídica do conceito de inimigo no Direito (que não seja estritamente no contexto de guerra) sempre foi lógica e historicamente o primeiro sintoma de destruição autoritária do Estado de Direito". Não podemos, pois, ombrear quase que automaticamente inadimplentes tributários a criminosos.

*Cesar Oliveira Janoti, mestrando em Ciências Jurídicas. Advogado especialista em Direito e Processo Penal. Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Paulista. Foi assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal e secretário parlamentar da Câmara dos Deputados

*Gilberto Frigo Jr., mestrando em Direito Tributário. Especialista em Direito Tributário. Advogado em São Paulo

*Thiago B. Sorrentino, mestre em Direito Tributário e doutorando em Ciências Jurídicas. Professor do IBMEC/DF e da Amagis/DF. Foi assessor de ministros do Supremo Tribunal Federal por uma década. Coautor do livro Responsabilidade Tributária Patrimonial, Penal e Trabalhista do Administrador de Pessoa Jurídica

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