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O impacto do Marco Legal das Startups na Lei das Sociedades Anônimas

Criação da 'Sociedade Anônima Simplificada' está entre as inovações trazidas pela LC 182, que, ao flexibilizar e fomentar um ambiente mais favorável de negócios às companhias fechadas com faturamento bruto anual até R$ 78 milhões, trouxe dúvidas quanto à sua abrangência

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Por Silvia Hachiya e Luís Francisco Jardim
Atualização:

Silvia Hachiya e Luís Francisco Jardim. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Em 1º de setembro de 2021 entrará em vigor a Lei Complementar 182 ("LC 182") que ficou conhecida como o "Marco Legal das Startups". Além de regulamentar as startups no direito brasileiro, a LC 182 tratou, também, de realizar alterações na Lei nº 6.404/76 - a "Lei das S/A" - com o objetivo de simplificar e tornar menos custosa a manutenção de certas companhias fechadas no Brasil. Essa medida, embora não necessariamente atrelada à disciplina das startups, é extremamente importante para o desenvolvimento de negócios no Brasil, em especial para a adoção do modelo de S/A por startups.

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Dentre as alterações promovidas, o art. 143 da Lei das S/A, cuja redação antes da entrada em vigor da LC 182 previa a composição mínima de 2 (dois) diretores, permitirá que a Diretoria seja formada por um único membro. Essa alteração será aplicável a qualquer companhia regida pela Lei das S/A.

A dúvida, contudo, paira sobre a alteração promovida no artigo 294 da Lei das S/A, que, antes da entrada em vigor da LC 182, flexibilizava - apenas às companhias fechadas com menos de 20 acionistas e cujo patrimônio líquido fosse igual ou inferior a R$ 10.000.000,00 - determinadas formalidades de convocação de assembleias gerais e publicação dos documentos necessários à assembleia geral ordinária das companhias referidos no artigo 133 da Lei das S/A.

A nova redação do artigo 294 da Lei das S/A foi implementada com a finalidade de se criar a Sociedade Anônima Simplificada ("SAS") - nome que não é formalmente adotado na LC 182, e, portanto, não será acolhido na Lei das S/A, mas ficou assim conhecida no meio jurídico.  Enquadram-se como SAS companhias de porte menor, cuja receita bruta anual seja inferior a R$ 78 milhões.

Às SAS serão aplicáveis determinadas regras específicas, menos formalistas, como a possibilidade de realizar as publicações exigidas na Lei das S/A na forma eletrônica (ao invés da custosa publicação no Diário Oficial do Estado e em jornal de grande circulação) e substituir os livros societários por livros mecanizados ou eletrônicos.

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Um dos dispositivos controversos aplicáveis à SAS refere-se à inclusão do seguinte parágrafo no artigo 294 da Lei das S/A: 

"§4. Na hipótese de omissão do estatuto quanto à distribuição de dividendos, estes serão estabelecidos livremente pela assembleia geral, hipótese em que não se aplicará o disposto no art. 202 desta Lei, desde que não seja prejudicado o direito dos acionistas preferenciais de receber os dividendos fixos ou mínimos a que tenham prioridade." (grifos nossos)

Nota-se que o referido dispositivo legal não traz elementos mínimos necessários para caracterizar, com a segurança jurídica devida, em quais situações, e em que extensão, a assembleia geral poderá estabelecer livremente a distribuição de dividendos.

Por um lado, as situações permitidas parecem amplas ("na hipótese de omissão do estatuto quanto à distribuição de dividendos"), mas, por outro lado, permite a interpretação de que, havendo qualquer regulação no estatuto sobre distribuição de dividendos, o dispositivo inteiro não se aplicaria àquela SAS.

Com relação à extensão da norma, parece-nos que a referência expressa à não aplicação do disposto no artigo 202 da Lei das S/A atuaria como um balizador e, portanto, um limitador da extensão da discricionariedade autorizada à assembleia geral.

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Vale ressaltar que o artigo 202 da Lei das S/A não trata apenas da fixação do dividendo mínimo obrigatório, mas também regula, principalmente mas não limitadamente, acerca de: (i) regra de pagamento de dividendos alocados à reserva de lucros a realizar, (ii) retenção da totalidade dos dividendos (que exigiria a aprovação da unanimidade dos acionistas), (iii) desobrigação da distribuição de dividendos em determinado exercício mediante a constituição de reserva especial, quando a administração da companhia julgar que a situação financeira é incompatível com referida distribuição, (iv) procedimento de pagamento dos dividendos alocados à reserva especial, e (v) obrigação de que todo lucro não destinado a reservas seja distribuído aos acionistas.

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Tais disposições, também previstas no artigo 202 da Lei das S/A, buscam, de um lado, assegurar o direito essencial do acionista (sobretudo minoritário) de participar dos lucros sociais e, de outro lado, preservar o interesse da companhia no tocante à manutenção de recursos para consecução de suas atividades.

Assim, a interpretação mais adequada a partir da leitura do texto legal é a de que, na hipótese em que o estatuto social da SAS for omisso em relação a questões trazidas no artigo 202 da Lei das S/A, a assembleia geral poderá livremente estabelecer as regras e procedimentos especificamente relacionados aos assuntos tratados nesse artigo, na medida do que for deliberado por maioria dos acionistas presentes, ou quórum aplicável.

Entretanto, parece-nos que, idealmente, a redação do §4º do artigo 294 deveria se restringir à referência ao dividendo mínimo obrigatório, interpretação essa que nos parece mais razoável pois estaria pautada no próprio objetivo da LC 182, consistente na criação de medidas de estímulos à constituição e desenvolvimento de startups e ao estabelecimento de incentivos a seus investimentos. Em se tratando de companhias em estágio inicial de captação de investimentos e desenvolvimento de seus negócios, seria justificável que a Assembleia Geral, por maioria dos acionistas presentes, determinasse o pagamento de dividendo mínimo inferior àquele estabelecido no artigo 202 ou, no limite, decidisse por não o distribuir, por completo, para investimento em suas atividades, diante de omissão no estatuto social da SAS.

No entanto, há correntes doutrinárias defendendo que a flexibilidade sobre distribuição de dividendos outorgada à assembleia geral não se restringe ao artigo 202 da Lei das S/A e, de forma mais ampla, autorizaria, por exemplo, a assembleia geral a distribuir dividendos de forma desproporcional à participação acionária, mediante deliberação por maioria dos acionistas presentes (ou quórum aplicável).  Tal corrente, contudo, não nos parece a mais correta, pois, nesse ponto específico, poderia ensejar o tratamento desigual a acionistas detentores da mesma classe de ações, afrontando um dos pilares do direito das sociedades anônimas através do qual é assegurado aos titulares de ações de mesma espécie iguais direitos e vantagens.  Nesse sentido, o direito à igualdade no recebimento de dividendos por ações de mesma classe é consagrado no artigo 109, §1º da Lei das S/A, na Seção II (Direitos Essenciais), em pleno vigor e com a seguinte redação:

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"Art. 109. Nem o estatuto social nem a assembleia-geral poderão privar o acionista dos direitos de:

I - participar dos lucros sociais; (...)

  • 1º. As ações de cada classe conferirão iguais direitos aos seus titulares.
  • 2º. Os meios, processos ou ações que a lei confere ao acionista para assegurar os seus direitos não podem ser elididos pelo estatuto ou pela assembleia-geral. (...)"

Por outro lado, caso a intenção da nova norma fosse a de permitir distribuições de dividendos desiguais a titulares da mesma espécie de ações, a LC 182 deveria prever, de forma clara, tal faculdade, ou fazendo referência expressa à inaplicabilidade do art. 109 à hipótese, ou, então, como previsto em relação às sociedades simples no Código Civil (também aplicável às limitadas) que, em seu artigo 1.007, determina, expressamente, que o sócio participa dos lucros e das perdas, na proporção das respectivas quotas, sendo admissível o contrato social estipular de forma diversa.

Vale ressalvar que há diversos julgados[1] que corroboram o entendimento quanto à admissibilidade de distribuição desproporcional à participação social em sociedades limitadas, desde que fixados os critérios e parâmetros para sua determinação. A fixação de tais critérios no contrato social da limitada é essencial para que não fique ao arbítrio da maioria a determinação da parcela de lucros cabível a cada um dos acionistas. Paradoxalmente, se o estatuto social da SAS dispuser sobre tais critérios, o novo § 4º do artigo 294 da Lei das S/A deixaria de se aplicar, já que o estatuto deixaria de ser omisso quanto à distribuição de dividendos.

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Outro ponto de dúvida trata dos requisitos para caracterização de uma SAS (e, consequentemente, a quem se aplicam as referidas regras ora alteradas na Lei das S/A).  De acordo com a LC 182, a nova redação do artigo 294 das Lei das S/A seria aplicável à "companhia fechada que tiver receita bruta anual de até R$ 78.000.000,00 (setenta e oito milhões de reais)".

O conceito atrelado apenas à receita bruta anual da companhia não parece seguir os critérios mais adequados para definir em que hipóteses o tratamento excepcional à regra geral das companhias seria aplicável (e inclusive já adotados em outras leis, tal como a Lei nº 11.638/2007), pois não distingue as companhias holdings de grandes grupos econômicos, cuja receita bruta anual, individualmente, pode não revelar o valor significativo de seus ativos (e portanto, a necessidade de tratamento especial).  A título de referência, a Lei nº 11.638/2007, que também alterou a Lei das S/A e estendeu às sociedades de grande porte disposições relativas à elaboração e divulgação de demonstrações financeiras, caracterizou sociedade de grande porte da seguinte forma:

"(...) sociedade ou conjunto de sociedades sob controle comum que tiver, no exercício social anterior, ativo total superior a R$ 240.000.000,00 (duzentos e quarenta milhões de reais) ou receita bruta anual superior a R$ 300.000.000,00 (trezentos milhões de reais)." (grifos nossos)

Observa-se, portanto, que uma definição mais adequada parece abranger o "conjunto de sociedades sob controle comum", bem como um critério alternativo relacionado ao conjunto de ativos, sem se limitar somente ao faturamento anual da companhia, isoladamente.  Além disso, o critério poderia, ainda, seguir a redação vigente anteriormente à LC 182 de forma a limitar a caracterização de SAS apenas às companhias que atendam a certos requisitos financeiros/contábeis e, adicionalmente, possuam um certo número de acionistas.

É importante refletir que flexibilizações na lei que atribuem à assembleia geral, por maioria de votos, decidir livremente sobre a distribuição de dividendos traz consigo a autorização expressa para reduzir direitos de acionistas minoritários. E da forma como proposto na LC 182, criou-se a possibilidade de se considerar como SAS uma sociedade anônima fechada que seja holding de um grupo econômico (e, portanto, como holding, que não tenha necessariamente faturamento anual relevante), detida por centenas ou até milhares de acionistas, e com participação em empresas operacionais de grande porte --  o que, certamente, não parece ter sido a intenção da LC 182, ao instituir o marco legal das startups e alterar disposições da Lei das S/A para flexibilização de certas formalidades e fomento a ambiente mais favorável para a constituição e desenvolvimento de negócios e investimentos em companhias de porte menor.Caberá, portanto, à jurisprudência definir os contornos de aplicação desse novo dispositivo o que, como já mencionado, não colabora com a almejada segurança jurídica, que deve pautar o ambiente de negócios.

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*Silvia Hachiya é formada pela faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, com pós-graduação lato sensu em LLM Direito Societário pelo IBMEC (atual Insper). É sócia do escritório Barros Pimentel, Alcantara Gil e Rodriguez Advogados

*Luís Francisco Jardim atualmente cursa LL.M - Master of Laws em Direito Tributário no Insper, é especialista em Direito Societário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), graduado em Direito na Universidade de São Paulo (USP) e sócio do escritório Barros Pimentel, Alcantara Gil e Rodriguez Advogados

[1] Nesse sentido, "Não há critério definido, objetivo, para a hipótese de distribuição desproporcional dos lucros, deixando ao arbítrio dos sócios que representam mais da metade do capital social os corréus Otávio e Ronaldo a escolha pela distribuição desproporcional, sem qualquer justificativa. Dada a alta litigiosidade entre os litigantes, sem que haja sequer valor ou percentual mínimo de distribuição de lucros, a atual redação da Cláusula Sétima "possibilita" aos réus que não distribuam lucros à autora. As aspas acima se explicam: a redação dá ensejo a essa intenção, mas a lei não permite. A redação dada pela 21ª alteração contratual à Cláusula Sétima viola o art. 1.007 do Código Civil ao permitir a distribuição desproporcional de lucros aos sócios, sem qualquer justificativa ou critério definido, e também o art. 1.008, pois tende a excluir a autora da participação nos lucros." (cf. Acórdão TJSP - Apelação Cível nº 1013364-28.2014.8.26.0100, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, 26/06/2020, Voto Relator nº 38.945 EMP - DIG - V).

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