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O financiamento de empresas em situação de insolvência após a vigência da Lei 14.112/2020

Por Arthur Mendes Lobo e Luan Nogueira Saltori
Atualização:

Arthur Mendes Lobo e Luan Nogueira Saltori. Foto: Divulgação5

Em 23 de janeiro de 2021, entrou em vigor a Lei 14.112/2020, trazendo uma série de alterações e complementações à Lei 11.101/2005, comumente denominada de Lei de Falências e Recuperação de Empresas (LFRE). A recente reforma legislativa regulamentou institutos jurídicos pré-existentes, como o financiamento DIP (debtor-in-possession financing) para regular e estimular a concessão de crédito às empresas em situação de insolvência.

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O financiamento DIP (debtor-in-possession financing), inserido na LFRE através da Lei 14.112/2020 (Seção IV-A), é um instituto jurídico inspirado no Direito da Insolvência estadunidense (U.S. Bankruptcy Act, Section 364, Chapter 11). Mas é importante ressaltar que o financiamento de empresas em recuperação já era possível no direito brasileiro nos anos que antecederam a recente alteração na lei. Em verdade, a novidade trazida pela Lei 14.112 diz respeito tão somente à regulamentação de um formato específico de concessão de crédito que, agora, exige prévia autorização judicial.

Diante da relevância do financiamento DIP para as empresas em situação de crise, é importante entender algumas características, requisitos e efeitos desta modalidade de investimento, bem como analisar os avanços e eventuais obstáculos trazidos pela reforma legislativa para a adequada interpretação e aplicação do instituto no ordenamento jurídico nacional.

Em regra, os administradores de empresa em recuperação não necessitam de autorização judicial ou da interferência de credores para a prática de determinado negócio jurídico. Isto porque a posição processual de recuperanda não retira a capacidade jurídica do empresário, nem da sociedade empresária. Aplica-se, então, na recuperação judicial, o princípio da liberdade dos administradores. São livres para negociar e contratar da forma como entendem necessário para a condução regular dos negócios empresariais da recuperanda.

Durante a recuperação judicial, as operações de financiamento que forem garantidas por bens ou direitos da recuperanda que não pertençam ao seu ativo circulante, bem como as operações de financiamento que envolverem bens ou direitos de terceiros exigirão autorização judicial (e oitiva prévia dos credores) (art. 69-A). É este o formato de operação que a doutrina denomina de DIP Financing.

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Contudo, não se sujeita à tais formalidades o financiamento introduzido pela Seção IV-A, referente às operações praticadas com o ativo circulante da recuperanda. Em outras palavras, estão excluídos da incidência do art. 69-A, por consequência, os financiamentos garantidos por oneração de bens ou direitos da própria recuperanda que sejam classificáveis, no aspecto contábil, como "ativos circulantes".

Delimitados os parâmetros conceituais do financiamento DIP, é necessário compreender a mens legis que fundamenta este instituto, isto é, a intenção e o pensamento do legislador ao elaborar a norma recém introduzida no ordenamento jurídico.

O cerne da questão debatida diz respeito ao acesso ao crédito por empresas em situação de insolvência. Por sua própria definição, a recuperação judicial destina-se às empresas que estejam em crise econômico-financeira, ainda que com possibilidade de superação. 

Ocorre que, logicamente, a crise econômico-financeira da empresa gera uma dificuldade para o pagamento de seus credores em curto prazo. De forma inevitável, portanto, a empresa devedora sofre abalo na sua reputação, o que por sua vez enseja o aumento de risco envolvido pela perspectiva dos investidores. O aumento de risco, enfim, resulta na dificuldade de a empresa devedora acessar o mercado de crédito em condições favoráveis. 

A problemática, embora relativamente simples de compreender, não é de fácil solução, na medida em que demanda a conciliação da urgência da empresa recuperanda em obter acesso ao capital, imprescindível para a condução de suas atividades, com a necessidade de o investidor ter segurança jurídica na hora de realizar operações de crédito. Com efeito, da perspectiva do agente financiador, é mais do que necessária a existência de garantias e ferramentas que possam lhe trazer segurança na hora de oferecer o crédito. 

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A resposta para o problema, assim, perpassa pela criação de um conjunto de regras e mecanismos destinados à diminuição do risco da atividade de financiamento e à redução do próprio custo do crédito. Nesta toada, a técnica escolhida pelo legislador para viabilizar o financiamento de empresas em recuperação foi a de criar uma ordem de prioridade para recompensar os financiadores e incentivá-los.

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É nesse contexto, portanto, que deve ser compreendida a Seção IV-A da Lei 14.112/2020: como uma oferta de maior segurança ao agente financiador, através da garantia de preferência do seu crédito sobre os demais valores sujeitos ao concurso da recuperação judicial de empresa devedora. 

Vale notar, ainda, que mesmo na hipótese de convolação da recuperação judicial em demanda falimentar, o crédito efetivamente entregue à empresa devedora estará dentre os primeiros na ordem de preferência de recebimento (art. 84, I-B), atrás apenas dos pedidos de restituição (art. 85), das despesas necessárias à administração da falência (art. 150) e dos créditos trabalhistas de natureza estritamente salarial até o limite de 5 (cinco) salários-mínimos por trabalhador (art. 151).

De mais a mais, as mudanças trazidas pelo Financiamento DIP, não trarão benefícios apenas aos agentes financiadores, mas também para todas as partes envolvidas no processo recuperacional - ao menos, em teoria. 

Assim, em um primeiro momento, a realização do financiamento DIP pode trazer indicativos de que o investidor acredita no soerguimento empresarial e na viabilidade econômica da reestruturação da empresa em crise, o que poderia auxiliar na futura aprovação do plano de recuperação judicial, ao conferir confiança aos demais credores.

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Não menos relevante é o fato de que a empresa em situação de insolvência receberá injeção de crédito novo (fresh money), podendo utilizar os valores recebidos para suprir a falta de fluxo de caixa e se manter operante enquanto cobre suas despesas e ainda mantém a posse e o controle dos bens ou direitos que foram dados em garantia.

Ao empresário, portanto, "a injeção de novos recursos à empresa em crise possibilita manter abertos os canais de fornecimento e custear gastos operacionais e de investimento necessários à manutenção da atividade no mercado".

Aventados os principais pontos positivos trazidos pela reforma legislativa, faz-se necessária a análise - ainda que breve - de eventuais conflitos que podem surgir da aplicação da Lei. 

A primeira crítica diz respeito ao financiamento DIP com garantia fiduciária, notadamente porque cria um privilégio que não é concedido às outras operações. Isto é, a concessão do DIP com garantia fiduciária instaura um tratamento díspar no que atine ao recebimento de créditos caso haja a convolação da recuperação judicial em falência. 

Explica-se: via de regra, o crédito efetivamente concedido ao devedor durante a Recuperação Judicial é extraconcursal (art. 84, I-B). Porém, se o financiamento DIP for realizado com garantia fiduciária, esse crédito permanecerá sendo extraconcursal, mas terá privilégio ainda maior sobre os demais créditos extraconcursais, superando os trabalhistas, por exemplo, mesmo em caso de falência da recuperanda, por força do que dispõe o art. 49, § 3º da LREF (inalterado, aliás, pela reforma legislativa). 

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As operações com garantia de hipoteca ou penhor, comparativamente, não atraem tantos investidores porque não asseguram prioridade de recebimento de crédito na hipótese de convolação em falência. Em verdade, a regulamentação da LREF restringe a amplitude do mercado de financiamento, na medida em que os agentes financiadores têm um risco maior nas hipóteses de operações realizadas com garantia real, se equiparadas às garantias fiduciárias extraconcursais.

Vale dizer, assim, que a Lei favorece o investidor que realiza operações com garantias fiduciárias em detrimento dos investimentos efetuados com garantia de hipoteca ou penhor, precisamente porque o crédito fiduciário não se sujeitará ao concurso de credores, o que não pode ser dito do crédito com garantias reais, que se sujeitará à ordem concursal prevista no artigo 83 da Lei 11.101/2005.

Outro ponto que merece maiores questionamentos concerne ao prazo para o financiamento DIP. Da leitura do artigo 69-A, resta consignado que o juiz poderá autorizar a concessão do financiamento DIP durante a Recuperação Judicial. A escolha de palavras do legislador, neste ponto específico, leva ao seguinte questionamento: como será feito o financiamento DIP após o encerramento do período de fiscalização da Recuperação Judicial?

Essa pergunta é importante porque, com a alteração da Lei 14.112/2020, o processo de recuperação judicial poderá ser extinto, a critério do juiz, no momento da homologação da aprovação do plano pela Assembleia Geral de Credores (art. 61 da LRE). Significa dizer que o devedor estará em recuperação somente enquanto durar o processo, que pode permanecer ativo até dois anos da concessão. Mas pode ser extinto antes mesmo dos dois anos, independentemente do período de carência, o que ensejaria na extinção antes mesmo de concluídas as obrigações previstas no plano.

Então é necessária a seguinte indagação: a prévia autorização judicial será requisito essencial para aqueles financiamentos envolvendo o ativo não circulante da empresa quando o processo de recuperação estiver extinto, mas a empresa ainda estiver em fase de soerguimento empresarial? Ou seja, mesmo que o processo de recuperação judicial já tenha encerrado, se a devedora estiver cumprindo o plano de recuperação, aplicar-se-á a regra do art. 69-A que exige autorização judicial para financiamento?

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Trata-se, ao que parece, de lacuna da lei, eis que não há qualquer menção ao financiamento após a extinção do processo de recuperação. 

Em um primeiro momento, seria possível interpretar, à luz do art. 66 da Lei 11.101/2005, que a alienação de um ativo não-circulante da empresa deveria passar por chancela do juízo mesmo depois do encerramento da recuperação judicial - ou, pelo menos, que tal operação seria admissível se estivesse expressamente prevista, com aprovação prévia pela Assembleia Geral de Credores, em um plano de recuperação judicial. No entanto, apenas a interpretação da legislação pela jurisprudência poderá trazer respostas mais concretas aos questionamentos.

Por outro lado, é importante frisar que a lei não proíbe a realização de um pré-contrato entre devedora e novo financiador. Vale dizer, assim, que é teoricamente possível a pactuação entre o agente financiador e a empresa devedora, antevendo a concessão de financiamento DIP após o encerramento do período de fiscalização judicial, ou seja, realizar o financiamento quando for extinto o processo de recuperação. Essa estipulação, pelo menos em tese, dispensaria a autorização judicial e aprovação do comitê de credores, uma vez que o negócio jurídico definitivo seria realizado apenas depois da extinção do processo de recuperação.

Existem outras controvérsias na Lei 14.112/2020. Como exemplo, o artigo 69-B previsto na Seção IV-A, dispõe sobre a impossibilidade de o ato decisório de concessão do financiamento DIP ser alterado após decisão em primeira instância, desde que o financiador tenha atuado em boa-fé.

Há que se analisar, contudo, os efeitos a longo prazo desta disposição legislativa. Embora trate-se de previsão destinada a conferir segurança jurídica ao investidor, é de conhecimento geral que o conceito de boa-fé é interpretado de forma ampla e com alto grau de subjetividade no direito pátrio brasileiro. Trata-se de conceito jurídico vago ou indeterminado.

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O que significaria ser um "financiador de boa-fé"? O conceito de "financiamento de boa-fé", até o advento da Lei 14.112/2020, sequer existia de forma expressa na legislação. A discussão quanto a este ponto ganha mais relevância na medida em que eventual desatenção do juízo de primeira instância poderá resultar em situações de fraude em desfavor dos credores. 

A atratividade da modalidade do financiamento DIP é precisamente a chancela judicial e a segurança jurídica conferida ao investidor. Mas, na prática, se o financiador agir de conluio com a recuperanda a fim de obter a extraconcursalidade de seu crédito em detrimento dos demais credores, haverá nítido prejuízo à coletividade.

Resta aí, portanto, a preocupação quanto aos efeitos colaterais que podem ser causados pela combinação nefasta da mootness doctrine (teoria da imutabilidade das decisões) com a atitude de credores e empresários de má-fé. Trata-se de ponto que atribui, ao juiz da Recuperação, a enorme responsabilidade de analisar todas as condições do financiamento de forma adequada, a fim de evitar eventual fraude irreparável aos credores.

A problemática ganha ainda mais relevo ao se considerar, como entende Geraldo Fonseca (2021, p. 220), que também quando terceiro, mesmo não sendo credor, financia a atividade do devedor na forma do art. 69-A, o seu crédito será considerado extraconcursal não apenas na recuperação judicial, porque posterior ao pedido, mas também se vier a ser decretada a falência, por força do art. 67 da Lei.

Ocorre que, nos termos do art. 69-E, qualquer pessoa poderá conceder o financiamento DIP à Recuperanda. E, se por um lado, é válida a ampliação de acesso ao crédito para a empresa em situação de crise, o fato é que o dispositivo em tela também abre as portas para todas as espécies de operações escusas visando a fraude em detrimento dos credores sujeitos à Recuperação Judicial, na medida em que se possibilita aos sócios da empresa recuperanda a realização de financiamento DIP.

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A nova regra viabiliza a realização de esquema fraudulento: um sócio da empresa em recuperação pode conceder o financiamento para a recuperanda com o único intento de receber os seus créditos como extraconcursais, realizando potencial confusão patrimonial que lhe gerará grandes benefícios, mesmo em situações nas quais a recuperanda irá inevitavelmente falir sem realizar o pagamento dos demais credores.

A hipótese, em verdade, já foi antevista pela doutrina nacional, que destaca precisamente a questionável atribuição de caráter extraconcursal ao aporte de recursos realizado pelos sócios. Isto porque, ao invés de gerar incentivo para a injeção de recursos destinados ao soerguimento da atividade empresarial, a legislação abriu margem para o aporte de capital realizado pelo sócio com a intenção de obter benefícios extraconcursais no caso de falência, em detrimento dos demais credores

Por isso é de se esperar que o Judiciário esteja atento para esse tipo de conduta fraudulenta. A crítica que se faz neste estudo é que a imutabilidade das decisões que autorizam o Financiamento DIP não pode prevalecer se houver fraude ou simulação entre financiador e empresa financiada, do contrário haveria irreversibilidade do caráter extraconcursal e lesão à coletividade de credores.

Resta saber como os Tribunais do ordenamento jurídico pátrio reagirão à mootness doctrine e ao teor do artigo 69-B. Embora o dispositivo não pareça deixar margem para questionamento, é também de conhecimento comum que os Tribunais brasileiros tendem a revisar as decisões judiciais de primeira instância, e não raro, com efeitos modificativos - razão pela qual existe a possibilidade de o artigo 69-B tornar-se, ao fim e ao cabo, "letra morta".

Por outro prisma, é imprescindível o olhar atento do magistrado ao analisar os efeitos do financiamento DIP sobre o ativo não-circulante. Deve-se ter extrema cautela na hora de verificar exatamente como este ativo não-circulante foi constituído, na medida em que a empresa Recuperanda poderia, em teoria, transferir ativos para a área de recebíveis de longo prazo, a fim de atuar em conluio com o investidor e obter as benéficas condições do DIP Financing por meio de manipulações contábeis.

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Portanto, percebe-se que muitas das questões interpretativas resultantes da Lei 14.112/2020 estão depositadas nas mãos do juiz, que será ao fim e ao cabo o último responsável por conceder a autorização judicial ao financiamento DIP. Daí a gravidade de se determinar que apenas o juiz de primeira instância poderá decidir sobre a extraconcursalidade do valor, eis que se trata de uma concentração de responsabilidades e poderes muito grande.

Neste exato sentido, destacam Daniel Carnio Costa e Alexandre Correa Nasser de Melo que o financiamento somente deverá ser autorizado pelo juízo recuperacional quando constatada a possibilidade de cumprimento do contrato e de efetivo soerguimento econômico da empresa, de modo que se estabelece espécie de filtro na realização do negócio jurídico - o modelo denominado pelos autores de "DIP-Juiz". 

Caberá ao juiz, por exemplo, verificar toda a documentação contábil e financeira da recuperanda de forma analítica, a fim de averiguar as reais condições financeiras da devedora, o ativo que se pretende transacionar, a idoneidade do próprio financiador, dentre diversos outros aspectos que podem influenciar na Recuperação Judicial como um todo.

Nesta linha argumentativa, é imprescindível também a análise detalhada pelo juízo da recuperação acerca da exata espécie de financiamento realizado, de quem irá conceder o crédito, de quais serão os critérios de remuneração adotados na operação de crédito, etc. Caso contrário, não se exclui a possibilidade de um mecanismo legítimo e necessário ser utilizado como mecanismo de fraude. 

É também com esta preocupação que Melhim Namem Chalhub e Marcio Calil de Assumpção destacam a necessidade de o juiz autorizar o financiamento apenas após a apresentação, na demanda recuperacional, do que os autores denominam de "uma proposta detalhada de financiamento com descrição da estrutura financeira (taxa, prazo, eventuais condições especiais), das garantias e dos benefícios desse financiamento com a concomitante ciência, no processo, a toda a coletividade de credores";

O que há que se ter em mente com relação à reforma legislativa é precisamente a necessidade de o juiz, antes de conceder o financiamento, ouvir todas as partes envolvidas. Isto é, por um lado, é profundamente necessário que seja ouvida com atenção a oitiva dos credores a respeito da operação.

Por outro aspecto, a fim de minimizar a assimetria informacional que é, por si só, inerente à Recuperação Judicial, é também necessário que o juiz, antes de autorizar o financiamento, dialogue com o Administrador Judicial e obtenha deste todas as informações contábeis e financeiras necessárias. Ao auxiliar do juízo também competirá o trabalho de investigar as reais razões que motivam a concessão do financiamento, assim como a idoneidade da operação.

Tomando como base os pontos já expostos, causa preocupação a notícia recentemente veiculada no jornal Valor Econômico em 30 de maio do presente ano, em que é relatada a prolação da primeira decisão que, após a reforma da Lei, autorizou judicialmente a realização de empréstimo com garantia fiduciária sobre bens do ativo não-circulante de empresa Recuperanda, sem antes ouvir os credores envolvidos no processo recuperacional.

A decisão, proferida pela 3ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro nos autos de Recuperação Judicial n. 0063873-34.2021.8.19.0001, partiu do pressuposto de que, em não havendo a formação do Comitê de Credores a tempo de analisar a operação requerida, tal função caberia ao Administrador Judicial, por força do art. 28 da Lei 11.101/2005. Deste modo, na medida em que o auxiliar do juízo e o Ministério Público estariam de acordo com o empréstimo, não haveria óbice para a autorização judicial.

Com o devido respeito àqueles que entendem de forma distinta, a decisão supracitada aparenta ir em sentido contrário à criação de um sistema sólido e coerente de precedentes no que concerne ao financiamento DIP. 

Ora, resta bastante claro que a função do Administrador Judicial no soerguimento da empresa é distinta da posição ocupada pelos credores na demanda recuperacional. É um contrassenso que o Administrador, que possui os seus próprios interesses no prosseguimento do feito, possa se manifestar em nome do interesse dos credores - em especial porque a hipótese de substituição é prevista para os casos que os credores optem por não constituir o Comitê.

Conclusão

Neste mesmo sentido, parece evidente que o juízo da Recuperação deverá determinar e aguardar a constituição do Comitê de Credores - ou, ao menos, aguardar a deliberação sobre sua criação - antes de se posicionar sobre a concessão do financiamento DIP, sob pena de evidente violação ao princípio do contraditório. Como é que se concederá decisão que impacta diretamente os credores sem antes ouvi-los? Decisão esta que, destaca-se, é teoricamente imutável em grau recursal.

A situação é ainda mais agravada pelo fato de que, no caso específico noticiado pelo Valor Econômico, a decisão não só deferiu a realização do empréstimo como o fez mediante o cancelamento de garantias de ônus reais previamente constituídas por outros credores sobre o bem objeto de alienação fiduciária. E tudo isto no interregno de dois meses, prazo entre a distribuição do pedido de Recuperação Judicial (19 de março de 2021) e a autorização do financiamento DIP (20 de maio de 2021).

Ainda, a decisão sequer chegou a analisar quais as condições da operação indicada em momento prévio, visto que, acolhendo o posicionamento do Administrador, determinou que a Recuperanda apresentasse, "em relatório mensal, as respectivas informações quando da assinatura do contrato de operação de crédito garantido por alienação fiduciária, tanto para a operação de curto prazo, quanto para a de longo prazo". 

É bem verdade que a celeridade processual é meta a ser atingida. No entanto, a necessidade de os procedimentos judiciais tramitarem mais rápido, por si só, não justifica a prolação de decisões que se omitem quanto à necessidade de ampla análise dos fatos e da realização do devido contraditório, princípio processual sagrado. Em outros termos, não se pode passar por cima do procedimento estipulado em lei, sob pena de haver o desvirtuamento do próprio instituto que se pretende tutelar.

Com o devido respeito ao entendimento em contrário, mas é precisamente esta espécie de decisão que se pretende evitar no que concerne ao financiamento DIP. O ativismo judicial na interpretação das novas regras, em ultima ratio, poderá acabar promovendo um descrédito no próprio procedimento de Recuperação Judicial. Vale dizer, se o propósito do financiamento DIP era precisamente aliar o fresh money à segurança jurídica aos credores, não parece que este segundo fim será cumprido se os credores sequer puderem se manifestar sobre o cancelamento unilateral de garantias sobre bens da Recuperanda.

Não se nega que a possibilidade de realização do financiamento DIP, por si só, pode ser ferramenta necessária e positiva para o adequado deslinde dos processos de recuperação judicial. A real possibilidade de obtenção de fluxo de caixa pela Recuperanda sem prejudicar a segurança jurídica conferida ao agente financiador, por si só, já é motivo para cautelosa celebração.

Nada obstante, não se pode esquecer que a legislação positivada, em si, não cria mecanismo perfeito e finalizado a ser seguido sem maiores questionamentos pelos operadores do direito. Pelo contrário, a Seção IV-A traz questões sensíveis que demandarão interpretação contínua e detalhada por todas as partes envolvidas na recuperação judicial - e, mais do que tudo, o adequado e aprofundado estudo pelo juízo da causa.

Transcorridos pouco mais de quatro meses desde a entrada em vigência da nova Lei, é ainda cedo para que se possa avaliar o efetivo impacto da Seção IV no processo de soerguimento das empresas em situação de insolvência. Apenas o tempo demonstrará se as inovações serão, de fato, aplicadas pelos operadores do direito de forma prudente e sensata.

*Arthur Mendes Lobo, professor de Direito Empresarial da UFPR. Doutor em Direito pela PUC-SP. Advogado Sócio do Escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço e Lobo Advocacia e Consultoria Jurídica.

*Luan Nogueira Saltori, pós-Graduando em Direito Empresarial. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Advogado no Escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço e Lobo Advocacia e Consultoria Jurídica.

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