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O federalismo que emerge da pandemia

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Por Fabrizio de Lima Pieroni e José Luiz de Souza Moraes
Atualização:
Fabrizio de Lima Pieroni e José Luiz de Souza Moraes. FOTOS: DIVULGAÇÃO Foto: Estadão

Nos Estados Unidos da América encontramos a origem do Federalismo. O seu surgimento decorreu da união de forças das treze colônias que haviam se tornado independentes do poderoso Império Britânico na guerra de 1775-1783. Esses pequenos países livres e soberanos perceberam que sozinhos pereceriam ao grande poderio militar inglês e não tinham condições de enfrentar os problemas da construção de uma nova nação e, assim, decidiram abrir mão de suas soberanias em favor de um ente central, a União, capaz de concentrar a força necessária para superar os inimigos de suas liberdades.

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Essa é a razão de ser do federalismo, o trabalho conjunto em prol de um bem comum, sem a perda da diversidade, substanciada na frase E pluribus unum, lema nacional dos Estados Unidos e que revela a essência dessa forma de Estado, a unidade dos diferentes, em nome do bem de todos.

O processo de formação do federalismo brasileiro, nascido com a primeira constituição da República de 1891, é exatamente o inverso do federalismo norte-americano. Se, na origem, o federalismo surge da união de Estados que abdicam de sua soberania em prol da formação de um novo ente, no Brasil, foi o Estado unitário, então existente no Império, que decide descentralizar seu poder para entes menores.

Mal copiado do federalismo norte-americano, adaptado a uma realidade distinta e dotado de um artificialismo que marca nosso Estado até os dias atuais, o Estado federal brasileiro caracteriza-se pela sensível concentração de poder na União e um papel coadjuvante dado aos Estados e, com a Constituição de 1988, também estendido aos municípios e ao Distrito Federal.

No entanto, a história mais uma vez comprova que é nas dificuldades que sobressai a real importância das coisas e, em meio à maior catástrofe que assola a humanidade desde a Segunda Guerra Mundial, enxergamos o crucial papel do federalismo como forma de união de forças contra um inimigo comum, agora com o nome de covid-19.

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Diante de uma pandemia que não poupa nenhum canto, povo ou etnia de nosso planeta, a população brasileira passou a assistir em estado de choque uma verdadeira guerra de opiniões e decisões conflitantes entre o presidente da República, governadores e prefeitos, especialmente em relação às medidas de isolamento social. E como toda guerra, essa também é permeada de desinformação, conhecida hoje pelo nome de fake News, disseminada pelas redes sociais e que leva empresários e a população em geral a não saber qual decisão seguir.

Na tragicômica política brasileira, a ausência de uma coordenação e planejamento nacional levou Estados e Municípios a se destacarem, de forma surpreendente, no papel de resistência. Como não há hierarquia nas competências federativas, os entes locais viram-se na obrigação de não sucumbir à ingerência, à irresponsabilidade e à falta de bom senso do ente central que, isolando o Brasil do resto do mundo civilizado, repudia diretrizes da Organização Mundial de Saúde, nega a ciência e alardeia a eficácia de tratamentos experimentais como sendo uma panaceia, apesar dos incontáveis alertas a respeito dos perigos de suas atitudes que causarão a morte evitável de milhares de pessoas.

Como jamais repetido com tamanha intensidade a ideia constante da frase "o presidente da República pode muito, mas não pode tudo", a população brasileira percebeu que a Constituição não deixou nas mãos da presidência o exclusivo comando da nação e, nas matérias que tratam de segurança sanitária, as ações de prefeitos e governadores no enfrentamento da pandemia da covid-19 devem ser respeitadas.

Da pandemia emergiu o federalismo cooperativo, tal como concebido pelo constituinte em 1988, consolidado no Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a competência comum dos governos em relação à saúde e assistência pública e a competência concorrente entre a União, Estados e o Distrito Federal para legislar sobre a proteção e defesa da saúde e aos municípios o exercício suplementar da mesma atribuição. Dessa forma, proibiu medidas tresloucadas do executivo federal que impliquem o afastamento unilateral das ações adotadas pelos entes locais e que importem em restrição de locomoção, comércio ou atividades culturais, bem como a imposição de distanciamento ou isolamento social, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos.

Naturalmente, a grave situação de enfrentamento de uma pandemia mundial exige coordenação nacional, notadamente em um país das dimensões do Brasil. A própria Constituição determina a cooperação técnica e financeira da União no setor de saúde. Cooperação que jamais significará submissão dos demais entes, pois impõe respeito às competências regionais e locais, em um ambiente de eficiência político-administrativa, nem tampouco justificará abusos dos entes menores, pois pressupõe respeito às normas gerais de interesse nacional.

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Não há dúvidas de que essa crise levará à discussão do pacto federativo e da necessidade de redefinição de nossa forma descentralizada e cooperativa de Estado. Por enquanto, podemos dizer que ainda há juízes na República e, graças a eles, a federação poderá adotar medidas e rotas que nos afastem do grande iceberg contra o qual o comandante de nossa nau pretende nos lançar. Que o federalismo e a união de esforços de todos os brasileiros salvem as almas dos nossos tripulantes.

*Fabrizio de Lima Pieroni, procurador do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo

*José Luiz de Souza Moraes, procurador do Estado de São Paulo. Mestre e Doutor em Direito. Secretário-geral da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo

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